Editorial
Embrulho
Paulo Barriga
O Natal está transformado
num caso
sério. Muito sério
mesmo. Está ao nível das
mais desenfreadas neuroses
coletivas. Daquelas mais
agudas. Convulsas e intratá-
veis. Ao fim de dois mil e tal
anos, vingou em toda a linha
a tendência pastoril que defende
o Natal como um acontecimento
para recriação di-
ária e não apenas para uso
no aniversário do Menino.
Porreiro, pá! Mas, ao invés
da generalização da palavra
bendita e da ação de graças,
da benevolência e do afeto,
aquilo que este Natal a cada
instante oferece é um embrulho.
Apenas. E só. Um invólucro
tanto maior, quanto
mais espessa for a expiação
do ofertante. E o peso da sua
carteira. Como se do presé-
pio jamais tivesse constado
vaca ou burro. E apenas possuíssem
valor e validade não
os reis do Oriente, mas um
quarto mago proveniente das
estepes geladas. Mãos largas.
Ostentativo. Pândego. Um
intruso no palheiro capaz de
aligeirar o peso que a ausência,
a carência de afetos e o
desapego continuado produzem
sobre a consciência. É
verdade, e as grandes superfícies
comerciais bem o fazem
relembrar: nos tempos
que correm, o Natal é sempre
que o homem quiser. Sempre
que homem e sempre que a
máquina que consegue ler
os preços das coisas através
dos códigos de barras o quiserem.
Não são brinquedos,
nem perfumes, nem aparelhos
eletrónicos o que hoje se
coloca dentro do embrulho
natalício. É antes o infindá-
vel sentimento de culpa que
se abate sobre as sociedades
contemporâneas. É a tal patologia
neurótica que a todos
afeta e cujos efeitos, segundo
a propaganda oficial,
podem ser aligeirados pelo
consumo massivo. Vivemos
sob o signo do evangelho segundo
o Pai Natal. Onde a
palavra conta menos que a
posse. Onde o tempo para
estar não tem valor face ao
tempo de dar. Onde a felicidade
e a alegria se medem
em função do sorriso exposto
diante do embrulho. O
santo embrulho. O consolo
da consoada mede-se em calorias,
em desperdício e, essencialmente,
nos despojos
que cada um consegue amontoar
junto ao contentor do
lixo. Anunciado nas vitrinas
todos os dias do ano, o Natal
está transformado num caso
sério. Num caso muito sério e
de difícil desembrulho.
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