quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Diário do Alentejo Edição 1555


Editorial


Descante

Paulo Barriga

É a cantar que a gente se entente.

É a cantar que espantamos

tantas vezes os

nossos males. É a cantar que nos

conhecemos e nos damos a conhecer.

Que nos identificamos

e que nos identificam. Em toda

a parte. É a cantar que nascemos,

que nos batizam, que casamos,

que celebramos todos os ritos

da nossa existência. Da nossa

experiência. Coletivamente. Seja

de roda dos grunhidos de um

porco, seja na soleira de uma

igreja, seja defronte de um bom

lume, seja com a barriga encostada

a um balcão de mármore

sarapintado de nódoas de vinho.

É a cantar que nos juntamos nas

alegrias, nas penas, nas festas,

nas tristezas. É a cantar, a nossa

vida toda. O cantar está em nós,

como nenhuma outra expressão

está. O cantar está para nós,

como está a cal para as paredes

de um monte. Entranhada.

Em camadas e camadas de pele

branca. Tantas camadas ardidas

pelo sol que da grande maioria

já não guardamos memória.

Nem delas, das caiadelas, nem

da própria caiadeira. E é por isso

mesmo que o cantar nos torna

tão particularmente diferentes

perante os outros. E é por isso

mesmo que é importante salvaguardar

da voracidade da unificação

global a nossa maneira

de cantar. Que tem nos grupos

corais os seus principais guardiões.

Mas que vai muito para

além deles, dos corais, e dos

seus repertórios mais ou menos

folclorizados. Quando se pretende

candidatar o cante alentejano

a património imaterial

da Unesco não é apenas do cante

que estamos a falar: é deste tal

povo que canta, no seu todo.

Neste momento há grandes clivagens

quanto à importância e,

principalmente, quanto à oportunidade

desta candidatura.

Notam-se birras e ciumeiras entre

os intervenientes mais ativos

e os atores supostamente excluídos.

Mas o que se nota, de facto,

é que o cantar, a nossa maneira

de cantar, pode estar a perder

uma oportunidade única. Que é

como quem diz: o cante, a nossa

mais identificativa expressão

cultural, pode estar a perder

uma oportunidade única. Que

é como quem diz: nós todos poderemos

estar a perder

uma oportunidade única.

Ou será que nem

mesmo a cantar a

gente se consegue entender?


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