Editorial
Descante
Paulo Barriga
É a cantar que a gente se entente.
É a cantar que espantamos
tantas vezes os
nossos males. É a cantar que nos
conhecemos e nos damos a conhecer.
Que nos identificamos
e que nos identificam. Em toda
a parte. É a cantar que nascemos,
que nos batizam, que casamos,
que celebramos todos os ritos
da nossa existência. Da nossa
experiência. Coletivamente. Seja
de roda dos grunhidos de um
porco, seja na soleira de uma
igreja, seja defronte de um bom
lume, seja com a barriga encostada
a um balcão de mármore
sarapintado de nódoas de vinho.
É a cantar que nos juntamos nas
alegrias, nas penas, nas festas,
nas tristezas. É a cantar, a nossa
vida toda. O cantar está em nós,
como nenhuma outra expressão
está. O cantar está para nós,
como está a cal para as paredes
de um monte. Entranhada.
Em camadas e camadas de pele
branca. Tantas camadas ardidas
pelo sol que da grande maioria
já não guardamos memória.
Nem delas, das caiadelas, nem
da própria caiadeira. E é por isso
mesmo que o cantar nos torna
tão particularmente diferentes
perante os outros. E é por isso
mesmo que é importante salvaguardar
da voracidade da unificação
global a nossa maneira
de cantar. Que tem nos grupos
corais os seus principais guardiões.
Mas que vai muito para
além deles, dos corais, e dos
seus repertórios mais ou menos
folclorizados. Quando se pretende
candidatar o cante alentejano
a património imaterial
da Unesco não é apenas do cante
que estamos a falar: é deste tal
povo que canta, no seu todo.
Neste momento há grandes clivagens
quanto à importância e,
principalmente, quanto à oportunidade
desta candidatura.
Notam-se birras e ciumeiras entre
os intervenientes mais ativos
e os atores supostamente excluídos.
Mas o que se nota, de facto,
é que o cantar, a nossa maneira
de cantar, pode estar a perder
uma oportunidade única. Que é
como quem diz: o cante, a nossa
mais identificativa expressão
cultural, pode estar a perder
uma oportunidade única. Que
é como quem diz: nós todos poderemos
estar a perder
uma oportunidade única.
Ou será que nem
mesmo a cantar a
gente se consegue entender?
Sem comentários:
Enviar um comentário