quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Diário do Alentejo Edição 1597


Editorial

Esferográfica

Paulo Barriga

Na verdade, isto já não vem
de agora. Há já algum
tempo atrás, alguns meses,
mais de um ano, talvez, dei-me
conta da ocorrância, do assunto,
para não dizer do problema. Sem
mais nem menos – fica aqui mal o
certíssimo “sem saber ler nem escrever”
– dei por mim a escrever com
lapiseiras, esferográficas, pontas
de lápis de carvão. Regularmente.
Novamente. Como antigamente. Ou
como agora mesmo, neste preciso
instante, que sobrevoo parte algures
de França. Com destino a Bruxelas.
Com uma cumpridora Bic Cristal
a arranhar de tinta azul as páginas
do bloco de apontamentos. Não há
nada de tempo vi de cima boa parte
do chão de Portugal, depois o da
Espanha, agora o da França. É porreira,
a sensação. Quase malandra,
até: espreitar do alto a insignificância
do que se passa cá em baixo. O
primeiro exercício que me ocorreu
foi o de tentar delinear as fronteiras.
Uma tarefa parva e inútil, disse -me
o húngaro que está sentado aqui
mesmo ao meu lado, já sem sapatos
nem paciência para a conversa.
Respondi-lhe que os espanhóis têm
a mania de espertos e que, daqui
de cima, são afinal tão pequeninos
que nem os vemos. Outra observação
parva. Isso é preconceito, bocejou
antes de adormecer. Pois é: é
preconceito. Preconceito que vem
da desconfiança cultural dos ventos
e dos casamentos. Do desconhecimento
mútuo. Da cristalização ou
aculturação de uma visão ultrapositivista
da História. E a Europa, para
onde agora vou, é isso mesmo: não
um caldeirão de culturas, onde fervilha
o direito à diferença, mas antes
uma adega com os diferentes potes
fechados em si mesmos, a azedarem
com o tempo que passa. Não gostamos
dos espanhóis porque são arrogantes
e sobranceiros. Detestamos os
alemães pelos mesmos motivos e outros
mais. Deploramos os gregos por
serem tão exatamente como nós. Os
ingleses porque sim. Os finlandeses
porque não se percebe patavina do
que dizem. Os checos por terem uma
cerveja melhor que a nossa. Os italianos
e os suecos por terem outras loiras
igualmente melhores que as nossas.
Este é o retrato do verdadeiro
europeu. Aquele ser egoísta que não
consegue ver a mais de um palmo
para lá do próprio nariz. Egocêntrico.
Picuinhas. Que se tem em muito
boa conta. Condição nenhuma neste
mundo se sobrepõe ao ser europeu.
O europeu é sempre melhor que o
europeu do lado. E é esta boa vibração
que nos corre na alma que vim
constatar a Bruxelas. Onde era suposto
existir o berço da união dos europeus,
a matriz humanista dos tempos
que correm, o cadinho onde se
fundem num mesmo metal todas as
culturas da Europa. Vim à procura
dessa Europa e não a encontrei. E parece
que isso, como o escrever a esferográfica,
já não vem de agora.

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