quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Diário do Alentejo Edição 1645

Editorial
Boato
Paulo Barriga

A notícia da minha morte
é claramente exagerada.
A advertência é de Mark
Twain. E tem mais de 150 anos. A
determinada altura da sua vida, o
admirável autor de Tom Sawyer foi
confrontado com a notícia da sua
própria morte. No rasgo inigualável
de ironia que atrás se transcreveu,
Twain definia para todo o sempre
o conceito de “boato”, esse virus
persistente que, a espaços, especialmente
na comunicação informal,
no “boca a boca”, contamina o frágil
organismo da informação. Nos
últimos dias, as redes sociais eletrónicas
têm-se mostrado muito ativas
na “divulgação” de casos de raptos
de crianças no Alentejo. As primeiras
“notícias” davam conta de tentativas
de sequestro falhadas em
Almodôvar, Ourique e Amareleja.
Revelavam que as “autoridades” se
encontravam em alerta geral contra
esse surto de malfeitorias inqualificáveis
e que até tinha sido encontrada
uma carrinha com material
de cirurgia, supostamente para ser
utilizado na extração de órgãos de
crianças para venda no mercado
negro internacional. Mais tarde o
drama adensa-se. Afinal, foram
mesmo raptadas duas crianças em
Almodôvar e outra na Escola Mário
Beirão, em Beja. Partilham-se centenas
de pormenores macabros, salientam-
se relatos por intermédia
pessoa, instala-se o pânico. A própria
comunidade educativa entra
no baile. Há professores em transe
que contactam pais e encarregados
de educação. Que fazem palestras
aos alunos sobre segurança e técnicas
de defesa. Mas que não fazem
um simples telefonema para as polícias,
para os bombeiros, para os órgãos
de comunicação social tradicionais...
Enfim, ingenuamente dão
corpo à tal máxima do jornalismo
que diz que uma mentira repetida
muitas vezes se transforma na mais
intocável das verdades. Este caso,
não fosse o pânico que se instalou
na região e especialmente em Beja,
até dava para rir de infantil e patético
que é. Assim como interessante
e igualmente risível é o regresso ao
tribalismo primário que resulta da
partilha de informação em exclusivo
nas redes sociais. O ser
facebookiano, isolado num universo
interminável de “amigos”,
julga-se suficientemente ilustrado
e manifestamente informado.
E só assim faz sentido que
entre a partilha de uma ninhada de
gatinhos fofinhos, uma lição de filosofia
barata com sotaque brasileiro
e um filme da apanhados caseiros,
possam desaparecer crianças aos
molhos para lhes retirarem os órgãos.
O que não faz sentido nenhum
é que gente com responsabilidades
no meio social ache que isto faz sentido.
É que a “notícia” do rapto das
criancinhas indefesas não é apenas
claramente exagerada: é manifestamente
apalermada.

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