quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Diário do Alentejo Edição 1656

Editorial
Cristiano
Paulo Barriga

Rei morto, rei posto. Em
apenas uma semana,
como manda aliás o protocolo
régio, a populaça enterrou
com lágrimas e palmas o rei velho
e com lágrimas e urras aclamou
o rei novo. Em matéria de sucessões,
o povo costuma ser impaciente
e apressados os monarcas
herdeiros. Tanta sofreguidão
junta, normalmente, leva ao precipício.
E o precipício, nos tempos
que correm, é o fim da própria
história. Eusébio e Cristiano.
À falta de melhores alternativas,
a nação reconheceu e proclamou
como seus verdadeiros
soberanos absolutos dois jogadores
de futebol. Coisa engraçada,
num país que sempre se autoproclamou
de poetas. Mas enfim…
Eusébio e Cristiano, o seu bom
tino para jogar à bola, levaram
e levam às diferentes partidas
do mundo o nome de Portugal
e levantaram e levantam a moral
global dos sujeitos residentes
ou nascidos nesta terra. Isso é
inegável. O povo necessita desse
alento como de pão para a boca.
E agradece. No fundo, apesar das
décadas que os separam, Eusébio
e Cristiano partilham em matéria
de espiritualismo popular um
céu de semelhanças. Foram e são
uma espécie de salvação dos aflitos.
Aliás, os seus próprios nomes
estão bentamente irmanados.
Eusébio é um nome que vem
do grego antigo e que quer dizer
qualquer coisa como “piedoso”.
Cristiano vem igualmente do
grego e significa “ungido”, nickname
do próprio Jesus de Nazaré.
Enterrámos, então, um devoto
caridoso. E aclamámos, pois sim,
“o escolhido”. Mas também são
grandes as diferenças que separam
os nossos santos de ontem
e de hoje. E a maior discrepância
entre eles tem precisamente a ver
com o tal precipício. Com o tal
fim da história. A beatificação
plebeia de Eusébio, com honras
de Panteão, advém de um processo
de “direito natural”. Fez o
que fez, viveu o que viveu, penou
o que penou e pronto. Já a canonização
de Cristiano nada deve
a penadoiros, nem a vivências.
Respeita apenas ao fazer. Ao que
faz. Ao tempo atual. Sendo que
as sociedades de agora, ultraliberais,
umbilicais, fulanizadas,
têm como premissa fundamental
a coroação do tempo presente.
Como se um feito de hoje, exaustivamente
celebrado, fosse irrepetível
ou inatingível num qualquer
futuro. Como se tudo o que
ficou para trás de hoje, a memória,
a experimentação, fosse uma
insignificância incomparável
com as dádivas do presente. E é
nisto que a história de Eusébio, o
piedoso, difere da ainda não-história
de Cristiano, o ungido. Por
muito que se queiram massajar
as semelhanças entre ambos.

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