quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A América fica longe?

Vivia-se bem na nossa aldeia até àquela noite de outubro em que os soldados vieram. A minha mãe escondeu-nos, à minha irmã e a mim, debaixo da cama. Quando espreitei para ver o que se passava, apenas vi os pés da minha mãe enfiados nos chinelos pretos e as botas grandes e lamacentas dos soldados.
Depois de saírem, o meu pai disse:
— Temos de partir já.
— Porquê? — perguntei.
— Porque não pensamos da mesma forma que eles, meu filho. Despachemo-nos!
O meu pai não nos deixava levar nada à excepção de uma muda de roupa. A minha mãe indignou-se:
— Vou ter de deixar todas as minhas coisas? A cadeira onde embalei os nossos filhos, a coberta que a minha mãe fez, ponto por ponto?
— Não levamos nada — tornou o meu pai. — Apenas o dinheiro para comprar a passagem para a América.
A palavra “América” não me era desconhecida, pois tinha ouvido os meus pais murmurá-la em noites inquietas. Seria esse, então, o nosso destino?
Nessa noite, vi pessoas a caminhar em silêncio pelas ruas recônditas e barcos junto ao cais, a balançar na água escura, enquanto homens falavam em segredo e o ouro passava de bolso em bolso.
— Preciso da tua aliança — disse o meu pai à minha mãe. — E das tuas granadas.
Sem dizer palavra, a minha mãe tirou o anel do dedo e o colar de granadas da bolsinha onde o guardava, depositada no fundo da trouxa que fizera.  
O meu pai disse que partiríamos de noite.
— Quantos dias faltam para chegar à América? — perguntou a minha irmã.
— Não muitos — respondeu o meu pai. — Não tenhas medo! — sossegou-a.
 
O barco de pesca era pequeno, nós éramos muitos e apareciam cada vez mais pessoas. Quando, por fim, zarpou do porto em direção ao oceano, o barco ia carregado.
A minha irmã não parava de fazer perguntas.
— Ainda não se consegue ver a América, pai?
— Ainda não — respondia o meu pai.
Estávamos a cerca de uma hora da praia quando os motores pararam. Os homens aglomeraram-se em torno deles.
— Partiu-se uma peça que não pode ser consertada — disse o meu pai à minha mãe, cuja cara fez o mesmo trejeito que quando fechara a porta de nossa casa pela última vez.
As mulheres improvisaram uma vela a partir de roupas atadas umas às outras e, quando a ergueram, vi a camisa domingueira do meu pai a esvoaçar. Mas a vela levou-nos de volta para a nossa praia e houve homens que dispararam contra nós a partir dos rochedos.
Por fim, o barco rumou na direção certa.
— Quantos dias faltam agora para chegar à América? — perguntou a minha irmã.
— Faltam alguns mais, minha pequenina — respondeu o meu pai, abraçando-nos com força e trocando olhares significativos com a minha mãe.
 
Os dias sucederam-se às noites e as noites aos dias. Ficámos sem comida e água e muitos adoeceram. Ao cair da tarde, juntávamo-nos os quatro na proa e o meu pai cantava, como fazia em casa.
 
“Dorme e sonha, o amanhã
vai trazer a liberdade.”
 
Esta era a única altura em que eu não sentia medo.
De dia, pescávamos e partilhávamos a pescaria. Quando chovia, apanhávamos a água com baldes. Eu dormia e sonhava. Sonhava com a minha casa. Sonhava com comida. Com o meu tio preferido, que trabalhava com o meu pai na loja e que tinha ficado para trás. Às vezes, chorava e a minha mãe embalava-me.
Um dia, vimos uma baleia, cinzenta como um elefante e coberta de lapas.
— Empurra-nos, baleia. Empurra-nos até à América — pediu a minha mãe.
Mas a baleia não a ouviu.
Noutro dia, aproximou-se um barco a motor, lançando nuvens de espuma. Contudo, a nossa alegria inicial logo deu lugar ao medo.
— São ladrões! — exclamámos.
Alguns conseguiram entrar no nosso barco, brandindo armas e gritando por dinheiro e jóias. Embora não houvesse muito para roubar, levaram tudo o que tínhamos.
 
Quando, certa vez, alguém gritou “Terra à vista!”, juntámo-nos todos no gradeamento. Porém, embora puxássemos a vela, o nosso barco não se aproximou da margem.
— Vamos nadar e pedir ajuda — disse o meu pai, deitando-se à água com dois outros homens.
— Não! — gritou a minha mãe.
Mas eles já tinham mergulhado. Quando os vimos emergir da espuma verde do mar e os vimos chegar à praia, levados pelas ondas, dançámos e batemos palmas. Só que havia soldados nos rochedos. Ficámos todos calados e a minha mãe agarrou a minha mão.
— Estão a trazê-los de volta — sussurrou.
Efetivamente, o meu pai e os companheiros estavam de volta, num pequeno barco, acompanhados por três soldados armados. Estes trouxeram-nos água e fruta, mas atiraram-nas, sem falar ou sorrir, para as nossas mãos ansiosas.
— Era a terra errada, pai? — perguntei, quando os soldados se foram embora. — Não serve para nós?
— Servia, filho, mas não nos aceitam — disse o meu pai.
— Não gostam de nós? — perguntou a minha irmã, puxando pelo braço dele.
— Não é por isso — respondeu ele, sem explicar o motivo.
A nossa família recebeu duas papaias, três limões e um coco com leite que sabia a flores.
 
Nessa noite, o mar estava encapelado e a canção do meu pai perdeu-se no vento. Murmurei a letra para mim, enquanto as estrelas mergulhavam e volteavam sobre as nossas cabeças.
 
 O amanhã virá, o amanhã virá,
e vai trazer a liberdade.”
 
Voltámos a avistar terra no dia seguinte. Eu tinha medo de ter esperança. Vimos um barco aproximar-se. A minha mãe apertou as mãos e baixou a cabeça. Será que também ela tinha medo de ter esperança? O barco circundou-nos duas vezes. Depois, atirou-nos uma corda e fomos puxados para terra. Entre nós reinava um silêncio ansioso e expectante. Havia pessoas à nossa espera no cais.
— Bem-vindos — disseram. — Bem-vindos à América.
Então, o nosso silêncio transformou-se em alegria. 
— Como sabiam que viríamos hoje? — admirou-se o nosso pai.
— Talvez venha gente todos os dias — disse a minha mãe. — Talvez eles saibam como nos sentimos.
 
Havia uma cabana, que o sol aquecera devido ao telhado de zinco, e também havia mesas cheias de comida. Embora os bancos estivessem ocupados, havia lugar para todos.
— Sabes que dia é hoje? — perguntou uma mulher, entregando-me um prato.
— É dia de vir para a América — respondi.
— É — disse ela, sorrindo. — E também é um dia especial por outra razão: hoje é Dia de Acção de Graças.
— O que é isso? — perguntou a minha irmã que, embora fosse tímida, não o era em demasia.
A mulher explicou:
— Há muito tempo, houve pessoas que vieram para aqui para começar uma vida nova e que celebraram a sua chegada dando graças.
O meu pai acenou, concordando:
— Essa é a única forma de celebrar.
Demos as mãos e fechamos os olhos, enquanto o meu pai dava graças por sermos livres e estarmos em segurança na América.
— Podemos ficar, pai? — perguntou a minha irmã.
— Sim, filha, podemos — respondeu o meu pai.
 
 
Eve Bunting 
How many days to America?
New York, Clarion Books, 1988

(Tradução e adaptação)

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