quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Flores esmagadas - Porque hoje é o Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina


Nascida na cidade de Cartum, no meio do deserto, Leila compreende desde cedo que não faz parte da sociedade sudanesa. Na escola, ela e a sua melhor amiga, Amal, são apelidadas de “filhas do pecado”. O mais próximo que tem de um lar é um orfanato severo, onde partilha a sua solidão com outras crianças abandonadas. A sua irmã mais velha, Zulima, está casada com um homem muito mais velho, o que é por todos considerado uma sorte, uma vez que uma rapariga abandonada raramente consegue quebrar o ciclo de miséria. Quando fazem dez anos, Leila e Amal não têm direito a celebrar. São, antes, submetidas à mutilação genital.




***
Tenho dez anos, mas os meus pés ainda não cresceram muito. Os meus dentes da frente continuam demasiado grandes para a cara e o espaço entre eles é suficientemente grande para lá enfiar a unha do polegar. E está a acontecer uma coisa estranha com o meu peito. Tenho uns inchaços, de ambos os lados. Por vezes, à noite, na cama, penso que vão desaparecer. Noutras alturas, parece que estão a aumentar. Já quase não consigo puxar até acima o fecho do fato com calções. A Amal diz que tenho uma doença. O peito dela parece duas picadas de mosquito, como sempre pareceu.
A mamã Luban1 está à porta, a limpar as mãos nodosas a um pano.



Estás bem? - pergunta. Forte? Faço que sim com a cabeça, meio desanimada. Ela deve querer que eu lave a louça pelos rapazes. Ou que lhe vá buscar um saco de arroz ao armazém.
Ótimo - diz ela. Porque esta é uma ocasião especial para ti. Continua a esfregar as mãos, apesar de já deverem estar secas.
Queres ser limpa, não queres? - pergunta. Pura.
Volto a assentir com a cabeça e ela abre a boca como se fosse dizer mais qualquer coisa. Em vez disso, roda sobre os calcanhares e volta para a cozinha. Ouço-a atarefada com os tachos e as panelas, mas não a bater com eles, como faz quando está zangada. Por um instante, até me parece ouvi-la cantarolar.
Na escola, as raparigas falam por vezes de purificação, quando a professora não está por perto. Dizem que uma rapariga que não for purificada nunca se casará, porque ninguém vai querê-la. Fender-se-á como um pagão, dizem, e estremecem, e fazem caretas. Eu concordo, e também faço caretas. Detesto a sensação de haver coisas que toda a gente sabe menos eu. De manhã, esfrego o corpo com a esponja, na casa de banho, e lavo-me toda com o sabonete cor-de-rosa que tem um cheiro ácido. A ideia de que aquilo da purificação tem a ver com mais qualquer coisa do que lavagens não me deixa sossegada.
Não posso perguntar à mamã Luban, não vá dar-se o caso de ser uma daquelas perguntas que não se devem fazer. Há montes de coisas a respeito das quais, na opinião dela, as raparigas não devem falar. A Amal provavelmente sabe, mas não quero ouvi-la a chamar-me idiota. A Zulima está sempre a pensar nos seus próprios problemas. Podia perguntar a Mrs. Khadija, mas nunca tenho oportunidade de falar com ela a sós.
A mamã Luban chama-nos, a mim e à Amal, ao pátio da casa Verde. Está sentada no banco baixo com o seu velho vestido de trazer por casa, a misturar pó de hena com água. Raspa a mistura dos lados da tigela com uma colher e junta os últimos grãos de pó seco à pasta espessa e esverdeada; o cheiro faz-me querer espirrar. Numa bandeja há um pequeno frasco de óleo, quadrados de papel de jornal e uma caixa de fósforos.
Amanhã é o vosso dia especial - diz.
Manda-nos sentar na cama, traz todas as suas coisas e senta-se no banco à nossa frente. A Amal bate palmas, excitada. A mamã Luban enrola um pedaço de papel de jornal em forma de cone e, com a colher, deita a mistura lá para dentro. Puxa o pé da Amal para o colo e esfrega-o com óleo. Usa o cone de papel de jornal como uma caneta, espremendo uma linha fina e ondulada a toda a volta do pé. Quando acaba, começa a cobrir a planta do pé com pasta
de hena, espalhando a mistura com um fósforo. Acaba um pé e passa para o outro. Está outra vez a cantarolar.
Desenha um círculo de hena nas palmas das mãos da Amal, e cobre a ponta de cada dedo com uma carapaça de pasta, apertando-a à volta para a fazer pegar. É a minha vez. Estendo os pés e ela desenha uma linha ondulada de hena à volta deles. Enquanto faz isto, diz-nos com a sua voz rouca que vamos tornar-nos mulheres, apesar de já ser um pouco tarde, e que sorte a nossa, e como vai ficar orgulhosa de nós se nos portarmos como uma mulher deve portar-se. Eu não sei como deve uma mulher portar-se, exceto que não deve falar alto nem comer avidamente, sobretudo quando está com outras pessoas.
Quando sinto a pasta de hena fria nas palmas das mãos, fico excitada. Sinto que vou ser alguém diferente. Esticar os braços e manter as mãos imóveis à minha frente faz-me doer os ombros. A mamã Luban olha para mim e abana a cabeça.
A partir de agora, tens de ser forte - diz. Tens de ser orgulhosa. Não mostres aos outros o teu sofrimento.
Deixa cair o cone vazio de hena dentro da tigela e diz que acabou. Eu e a Amal sentamo-nos lado a lado com as pernas esticadas para a frente até que a sombra da parede da cozinha se afasta de nós e ficamos ao sol. Ao longe, os rapazes gritam uns com os outros; as aves juntam-se nas árvores junto ao muro das traseiras da aldeia.
A Amal está sentada, muito quieta. Não fala comigo, com medo de que isso impeça a hena de fazer efeito. É aborrecido, estar assim sem fazer nada. Mexo-me um pouco, e alguma da hena cai. Tiro um pouco mais com os dedos, só para ver o que está a acontecer por baixo, e isso faz com que grandes pedaços da pasta se soltem das pontas. Sinto uma comichão na planta do pé e tenho de esfregá-la contra a perna da cama. Quando a mamã Luban diz que são horas de nos prepararmos para a cama, a maior parte da minha hena já caiu.
Lavamos a que resta juntas, esfregando-a debaixo da torneira exterior com um pedaço de esponja, sem sabão, como a mamã Luban nos diz. Mais tarde, esfrega um pouco mais de óleo na nossa pele e diz que a cor vai tornar-se mais escura durante a noite. Desaparece no quarto dela e volta pouco depois com vestidos novos para nós, e dois pequenos anéis de ouro, e umas pulseiras especiais de fio de seda com contas e amuletos para afastar o mau-olhado. Pomos as pulseiras e os anéis e ela diz que podemos usar os vestidos de manhã, porque é nessa altura que vamos tornar-nos mulheres. Fico aliviada; detesto usar vestidos. A Amal fica desapontada; queria dormir com o dela.
A Amal vem passar a noite comigo na Casa Verde e ficamos as duas a conversar no escuro durante muito tempo. Não consigo dormir. Faz parte da estranheza do dia, do modo
como tudo está a mudar minuto a minuto da minha antiga vida para outra que ainda não conheço. A Amal diz que está desejosa por ser uma mulher para poder ser uma professora como Mrs. Khadija. Eu digo que também e tau desejosa, que tenho ainda mais pressa do que ela. Quando acordo, ainda é escuro. Agarro-me com força à Waheda
2. Que será de mim quando não puder ir à escola nem viver na aldeia? Pergunto-lhe silenciosamente. Quem me dará de comer? Onde irei dormir? Peço a Deus que não me faça crescer.
A omeleta está exatamente como eu gosto, salgada e macia e com pedaços de cebola e tomate. E também bebemos a minha bebida preferida: tebaldi, a que é feita com sementes da árvore da vida, que é doce e amarga ao mesmo tempo. A mamã Luban serve-nos, a mim e a Amal, um grande copo e então vai à porta olhar para o portão, ao fundo do caminho. Volta para o quarto dela, a falar sozinha em voz baixa. Obrigou-nos a tomar banho e a vestir os vestidos novos; a ora não nos podemos afastar de casa. Estamos a lavar a louça nas traseiras quando ouvimos muitas vozes, todas a falar e a gritar ao mesmo tempo. A Amal deixa cair o esfregão e começa a chorar.
Juntam-se à nossa volta, a rir e a brincar como se estivessem numa festa. Estão aqui todas as mães de todas as casas, além de duas outras mulheres que nunca vi. Uma delas, a gorda, traz uma mala preta numa mão. A mamã Amaani tem um tambor de barro e um grande sorriso na cara. Há qualquer coisa na excitação delas que me faz ter medo. A mamã Luban diz à Amal que a acompanhe e o grupo inteiro entra atrás delas, deixando-me sozinha no pátio. Não consigo concentrar-me na louça, há demasiado barulho a vir do interior da casa.
Há o bater do tambor, e todas as mulheres fazem ruídos com a garganta, como se estivessem num casamento. A mamã Luban sai a correr, enche um jarro de água no zir3
As mulheres juntaram-se todas no meu quarto. A portada da janela está fechada e a luz elétrica acesa e a ventoinha do teto ligada. A Amal está deitada na outra cama, voltada para a parede, tapada com um xaile novo. As cores púrpura, laranja e dourado parecem intensas e excitantes à luz da lâmpada. A mamã Amaani está sentada junto dela e pousa-lhe uma mão no ombro. O ar está carregado do fumo do grande queimador de incenso colocado ao lado da minha cama e vejo no chão uma bacia de lata com sangue e pedaços de uma coisa que não consigo reconhecer. Estão cá todas as mães, e as duas mulheres que nunca vi. A gorda tem umas mãos enormes diz-me que me despache e dispa as cuecas e me deite de costas na e volta para dentro. Ao cabo do que me parece muito tempo, chega à porta das traseiras e faz-me sinal para a seguir.


cama. Diz que já perdeu tempo mais do que suficiente com a outra a lutar como uma gata e que se eu tiver juízo fico quietinha e fica tudo resolvido antes que dê por isso.
A mamã Luban senta-se ao meu lado, meio em cima de mim; tapa-me os olhos com os dedos e duas das outras mães afastam-me os joelhos e seguram-nos com tanta força que não consigo mexer-me.
Começo a gritar por socorro está tudo a acontecer muito depressa, não estou preparada. Sinto uma palmada na perna e ouço a mamã Hajji, a mais velha, dizer que não tenho motivos para gritar, ainda ninguém me tocou. Depois disso, não sei exatamente o que acontece, mas sinto uma dor aguda e horrível entre as pernas e a mamã Luban diz que é uma injeção. Logo a seguir, sinto uma dor de um género diferente, uma súbita agonia que me corta a respiração. Tento sacudir as mulheres de cima de mim, mas duas delas prendem-me as pernas com os braços e não consigo mexer-me. O quarto está cheio de barulhos: o tambor, vozes de mulheres a gritarem-me que seja forte, e todas elas a fazerem os gritos de casamento do fundo da garganta.
Penso que devem estar a matar-me. Grito-lhes que parem, o mais alto que consigo. A mamã Luban abre os dedos de modo a tapar-me a boca além dos olhos e vejo de relance a mulher, aos pés da cama a segurar uma grande agulha encurvada com os dedos cobertos de sangue. Afasta a agulha de mim, com um pedaço de linha ensanguentada atrás. A mão volta a tapar-me os olhos.
A mamã Luban sai de cima do meu braço e põe-se de pé; a respiração está a voltar ao meu corpo em grandes arquejos. A mulher gorda atira a agulha para dentro de uma tigela e limpa as mãos. Beija as pontas dos dedos com um estalido.
Como uma melancia - diz. Não entra nada.
Sinto alguém puxar-me o vestido para os joelhos, a leveza sedosa de um xaile a ser lançada sobre mim. As mulheres saem do quarto e, pouco depois, fica tudo silencioso. Sinto uma dor ardente entre as pernas. É como se o meu corpo não me pertencesse. Arde-me a garganta. Vejo a Waheda no chão, junto ao armário, mas quando penso em levantar-me da cama para ir buscá-la, apercebo-me de que tenho as pernas amarradas uma à outra. A Amal geme na cama ao lado. Chamo-a, mas ela não responde. O xaile é escorregadio entre os meus dedos. A cara de Waheda não tem qualquer expressão.
No dia seguinte, ainda estou cheia de dores, apesar de conseguir levantar-me da cama e andar pelo quarto e comer o almoço especial que a mamã Luban me prepara. A Amal está com febre. Não consegue urinar. À noite, começa a dizer coisas sem sentido. Têm de levá-la no carro do diretor. Só volta à aldeia uma semana mais tarde e, quando volta, não consegue estar de pé. A mamã Amaani obriga-a a usar ao pescoço uma bolsa hejab
4 que contém uma oração para a fazer ficar melhor, e ela passa a maior parte do resto das férias estendida numa cama na sombra da rakuba5 nas traseiras da casa Azul. A mamã Amaani diz que a mamã Luban escolheu a mulher errada para fazer a purificação e que se tivesse seguido o seu conselho e chamado alguém mais novo não teria havido qualquer problema.
A mamã Luban diz que a mulher que chamou é famosa por deixar cicatrizes limpas e que, se Deus quiser, a Amal há de ficar perfeitamente bem, com o tempo. A mamã Amaani diz que a mamã Luban não devia ter chamado uma velha que não consegue ver a lua no céu, quanto mais um botão de rosa. Estou sentada ao lado da Amal, na sombra da rakuba; elas estão na cozinha. Depois de a mamã Luban sair, a mamã Amaani bufa e fica a falar sozinha. Pouco depois, põe a tocar uma das suas cassetes e eu deixo de a ouvir.
Continuo a não saber o que é a purificação. Só sei que já não consigo defender a baliza como deve ser, e não consigo saltar de pedra para pedra ao longo do caminho. Demoro muito tempo a urinar. O chichi sai aos pingos, quando antigamente saía como de uma torneira.
A mamã Luban diz que eu não devia continuar a jogar futebol.

1 Uma das amas do orfanato.
2 A boneca de pano.
3 Bilha de barro, usada para guardar e refrescar água.
4 Hejab – referência às roupas femininas tradicionais do islamismo
5 Estrutura de lados abertos que proporciona proteção contra o sol.

Wendy Wallace e Leila Aziz
Filha do Pecado
Porto, Edições ASA, 2011

(Excertos adaptados)

Sem comentários: