Nascida na cidade de Cartum, no meio do deserto, Leila
compreende desde cedo que não faz parte da sociedade sudanesa. Na escola, ela e
a sua melhor amiga, Amal, são apelidadas de “filhas do pecado”. O mais próximo
que tem de um lar é um orfanato severo, onde partilha a sua solidão com outras
crianças abandonadas. A sua irmã mais velha, Zulima, está casada com um homem
muito mais velho, o que é por todos considerado uma sorte, uma vez que uma
rapariga abandonada raramente consegue quebrar o ciclo de miséria. Quando fazem
dez anos, Leila e Amal não têm direito a celebrar. São, antes, submetidas à
mutilação genital.
***
Tenho dez anos, mas os meus pés ainda não cresceram muito. Os
meus dentes da frente continuam demasiado grandes para a cara e o espaço entre
eles é suficientemente grande para lá enfiar a unha do polegar. E está a
acontecer uma coisa estranha com o meu peito. Tenho uns inchaços, de ambos os
lados. Por vezes, à noite, na cama, penso que vão desaparecer. Noutras alturas,
parece que estão a aumentar. Já quase não consigo puxar até acima o fecho do
fato com calções. A Amal diz que tenho uma doença. O peito dela parece duas
picadas de mosquito, como sempre pareceu.
A mamã Luban1 está à porta, a limpar as mãos nodosas a um pano.
— Estás bem? - pergunta. — Forte? Faço que sim com a
cabeça, meio desanimada. Ela deve querer que eu lave a louça pelos rapazes. Ou
que lhe vá buscar um saco de arroz ao armazém.
— Ótimo - diz ela. — Porque esta é uma ocasião
especial para ti. Continua a esfregar as mãos, apesar de já deverem estar
secas.
— Queres ser limpa, não queres? -
pergunta. — Pura.
Volto a assentir com a cabeça e ela abre a boca como se fosse
dizer mais qualquer coisa. Em vez disso, roda sobre os calcanhares e volta para
a cozinha. Ouço-a atarefada com os tachos e as panelas, mas não a bater com
eles, como faz quando está zangada. Por um instante, até me parece ouvi-la
cantarolar.
Na escola, as raparigas falam por vezes de purificação, quando a
professora não está por perto. Dizem que uma rapariga que não for purificada
nunca se casará, porque ninguém vai querê-la. Fender-se-á como um pagão, dizem,
e estremecem, e fazem caretas. Eu concordo, e também faço caretas. Detesto a
sensação de haver coisas que toda a gente sabe menos eu. De manhã, esfrego o corpo
com a esponja, na casa de banho, e lavo-me toda com o sabonete cor-de-rosa que
tem um cheiro ácido. A ideia de que aquilo da purificação tem a ver com mais
qualquer coisa do que lavagens não me deixa sossegada.
Não posso perguntar à mamã Luban, não vá dar-se o caso de ser
uma daquelas perguntas que não se devem fazer. Há montes de coisas a respeito
das quais, na opinião dela, as raparigas não devem falar. A Amal provavelmente
sabe, mas não quero ouvi-la a chamar-me idiota. A Zulima está sempre a pensar nos
seus próprios problemas. Podia perguntar a Mrs. Khadija, mas nunca tenho
oportunidade de falar com ela a sós.
A mamã Luban chama-nos, a mim e à Amal, ao pátio da casa Verde.
Está sentada no banco baixo com o seu velho vestido de trazer por casa, a
misturar pó de hena com água. Raspa a mistura dos lados da tigela com uma
colher e junta os últimos grãos de pó seco à pasta espessa e esverdeada; o
cheiro faz-me querer espirrar. Numa bandeja há um pequeno frasco de óleo,
quadrados de papel de jornal e uma caixa de fósforos.
— Amanhã é o vosso dia especial -
diz.
Manda-nos sentar na cama, traz todas as suas coisas e senta-se
no banco à nossa frente. A Amal bate palmas, excitada. A mamã Luban enrola um
pedaço de papel de jornal em forma de cone e, com a colher, deita a mistura lá
para dentro. Puxa o pé da Amal para o colo e esfrega-o com óleo. Usa o cone de
papel de jornal como uma caneta, espremendo uma linha fina e ondulada a toda a
volta do pé. Quando acaba, começa a cobrir a planta do pé com pasta
de hena, espalhando a mistura com um fósforo. Acaba um pé e
passa para o outro. Está outra vez a cantarolar.
Desenha um círculo de hena nas palmas das mãos da Amal, e cobre
a ponta de cada dedo com uma carapaça de pasta, apertando-a à volta para a
fazer pegar. É a minha vez. Estendo os pés e ela desenha uma linha ondulada de
hena à volta deles. Enquanto faz isto, diz-nos com a sua voz rouca que vamos
tornar-nos mulheres, apesar de já ser um pouco tarde, e que sorte a nossa, e
como vai ficar orgulhosa de nós se nos portarmos como uma mulher deve
portar-se. Eu não sei como deve uma mulher portar-se, exceto que não deve falar
alto nem comer avidamente, sobretudo quando está com outras pessoas.
Quando sinto a pasta de hena fria nas palmas das mãos, fico
excitada. Sinto que vou ser alguém diferente. Esticar os braços e manter as
mãos imóveis à minha frente faz-me doer os ombros. A mamã Luban olha para mim e
abana a cabeça.
— A partir de agora, tens de ser
forte - diz. — Tens de ser orgulhosa. Não mostres aos outros o teu sofrimento.
Deixa cair o cone vazio de hena dentro da tigela e diz que
acabou. Eu e a Amal sentamo-nos lado a lado com as pernas esticadas para a
frente até que a sombra da parede da cozinha se afasta de nós e ficamos ao sol.
Ao longe, os rapazes gritam uns com os outros; as aves juntam-se nas árvores
junto ao muro das traseiras da aldeia.
A Amal está sentada, muito quieta. Não fala comigo, com medo de
que isso impeça a hena de fazer efeito. É aborrecido, estar assim sem fazer
nada. Mexo-me um pouco, e alguma da hena cai. Tiro um pouco mais com os dedos,
só para ver o que está a acontecer por baixo, e isso faz com que grandes
pedaços da pasta se soltem das pontas. Sinto uma comichão na planta do pé e
tenho de esfregá-la contra a perna da cama. Quando a mamã Luban diz que são
horas de nos prepararmos para a cama, a maior parte da minha hena já caiu.
Lavamos a que resta juntas, esfregando-a debaixo da torneira
exterior com um pedaço de esponja, sem sabão, como a mamã Luban nos diz. Mais
tarde, esfrega um pouco mais de óleo na nossa pele e diz que a cor vai
tornar-se mais escura durante a noite. Desaparece no quarto dela e volta pouco
depois com vestidos novos para nós, e dois pequenos anéis de ouro, e umas
pulseiras especiais de fio de seda com contas e amuletos para afastar o
mau-olhado. Pomos as pulseiras e os anéis e ela diz que podemos usar os
vestidos de manhã, porque é nessa altura que vamos tornar-nos mulheres. Fico
aliviada; detesto usar vestidos. A Amal fica desapontada; queria dormir com o
dela.
A Amal vem passar a noite comigo na Casa Verde e ficamos as duas
a conversar no escuro durante muito tempo. Não consigo dormir. Faz parte da
estranheza do dia, do modo
como tudo está a mudar minuto a minuto da minha antiga vida para
outra que ainda não conheço. A Amal diz que está desejosa por ser uma mulher
para poder ser uma professora como Mrs. Khadija. Eu digo que também e tau
desejosa, que tenho ainda mais pressa do que ela. Quando acordo, ainda é
escuro. Agarro-me com força à Waheda
2. Que será de mim quando não
puder ir à escola nem viver na aldeia? Pergunto-lhe silenciosamente. Quem me
dará de comer? Onde irei dormir? Peço a Deus que não me faça crescer.
A omeleta está exatamente como eu gosto, salgada e macia e com
pedaços de cebola e tomate. E também bebemos a minha bebida preferida: tebaldi,
a que é feita com sementes da árvore da vida, que é doce e amarga ao mesmo
tempo. A mamã Luban serve-nos, a mim e a Amal, um grande copo e então vai à
porta olhar para o portão, ao fundo do caminho. Volta para o quarto dela, a
falar sozinha em voz baixa. Obrigou-nos a tomar banho e a vestir os vestidos
novos; a ora não nos podemos afastar de casa. Estamos a lavar a louça nas
traseiras quando ouvimos muitas vozes, todas a falar e a gritar ao mesmo tempo.
A Amal deixa cair o esfregão e começa a chorar.
Juntam-se à nossa volta, a rir e a brincar como se estivessem
numa festa. Estão aqui todas as mães de todas as casas, além de duas outras
mulheres que nunca vi. Uma delas, a gorda, traz uma mala preta numa mão. A mamã
Amaani tem um tambor de barro e um grande sorriso na cara. Há qualquer coisa na
excitação delas que me faz ter medo. A mamã Luban diz à Amal que a acompanhe e
o grupo inteiro entra atrás delas, deixando-me sozinha no pátio. Não consigo
concentrar-me na louça, há demasiado barulho a vir do interior da casa.
Há o bater do tambor, e todas as mulheres fazem ruídos com a
garganta, como se estivessem num casamento. A mamã Luban sai a correr, enche um
jarro de água no zir3
As mulheres juntaram-se todas no meu quarto. A portada da janela
está fechada e a luz elétrica acesa e a ventoinha do teto ligada. A Amal está
deitada na outra cama, voltada para a parede, tapada com um xaile novo. As
cores — púrpura, laranja e dourado —
parecem intensas e excitantes à luz da lâmpada. A mamã Amaani
está sentada junto dela e pousa-lhe uma mão no ombro. O ar está carregado do
fumo do grande queimador de incenso colocado ao lado da minha cama e vejo no
chão uma bacia de lata com sangue e pedaços de uma coisa que não consigo
reconhecer. Estão cá todas as mães, e as duas mulheres que nunca vi. A gorda — tem umas mãos enormes — diz-me que me despache e dispa
as cuecas e me deite de costas na e volta para dentro. Ao cabo do que me parece
muito tempo, chega à porta das traseiras e faz-me sinal para a seguir.
cama. Diz que já perdeu tempo mais do que suficiente com a outra
a lutar como uma gata e que se eu tiver juízo fico quietinha e fica tudo
resolvido antes que dê por isso.
A mamã Luban senta-se ao meu lado, meio em cima de mim; tapa-me
os olhos com os dedos e duas das outras mães afastam-me os joelhos e
seguram-nos com tanta força que não consigo mexer-me.
Começo a gritar por socorro —
está tudo a acontecer muito depressa, não estou preparada. Sinto
uma palmada na perna e ouço a mamã Hajji, a mais velha, dizer que não tenho
motivos para gritar, ainda ninguém me tocou. Depois disso, não sei exatamente o
que acontece, mas sinto uma dor aguda e horrível entre as pernas e a mamã Luban
diz que é uma injeção. Logo a seguir, sinto uma dor de um género diferente, uma
súbita agonia que me corta a respiração. Tento sacudir as mulheres de cima de
mim, mas duas delas prendem-me as pernas com os braços e não consigo mexer-me.
O quarto está cheio de barulhos: o tambor, vozes de mulheres a gritarem-me que
seja forte, e todas elas a fazerem os gritos de casamento do fundo da garganta.
Penso que devem estar a matar-me. Grito-lhes que parem, o mais
alto que consigo. A mamã Luban abre os dedos de modo a tapar-me a boca além dos
olhos e vejo de relance a mulher, aos pés da cama a segurar uma grande agulha
encurvada com os dedos cobertos de sangue. Afasta a agulha de mim, com um
pedaço de linha ensanguentada atrás. A mão volta a tapar-me os olhos.
A mamã Luban sai de cima do meu braço e põe-se de pé; a
respiração está a voltar ao meu corpo em grandes arquejos. A mulher gorda atira
a agulha para dentro de uma tigela e limpa as mãos. Beija as pontas dos dedos
com um estalido.
— Como uma melancia - diz. — Não entra nada.
Sinto alguém puxar-me o vestido para os joelhos, a leveza sedosa
de um xaile a ser lançada sobre mim. As mulheres saem do quarto e, pouco
depois, fica tudo silencioso. Sinto uma dor ardente entre as pernas. É como se
o meu corpo não me pertencesse. Arde-me a garganta. Vejo a Waheda no chão,
junto ao armário, mas quando penso em levantar-me da cama para ir buscá-la,
apercebo-me de que tenho as pernas amarradas uma à outra. A Amal geme na cama
ao lado. Chamo-a, mas ela não responde. O xaile é escorregadio entre os meus
dedos. A cara de Waheda não tem qualquer expressão.
No dia seguinte, ainda estou cheia de dores, apesar de conseguir
levantar-me da cama e andar pelo quarto e comer o almoço especial que a mamã
Luban me prepara. A Amal está com febre. Não consegue urinar. À noite, começa a
dizer coisas sem sentido. Têm de levá-la no carro do diretor. Só volta à aldeia
uma semana mais tarde e, quando volta, não consegue estar de pé. A mamã Amaani
obriga-a a usar ao pescoço uma bolsa hejab
4 que contém uma oração para a
fazer ficar melhor, e ela passa a maior parte do resto das férias estendida
numa cama na sombra da rakuba5
nas traseiras da casa Azul. A mamã Amaani diz que a
mamã Luban escolheu a mulher errada para fazer a purificação e que se tivesse
seguido o seu conselho e chamado alguém mais novo não teria havido qualquer
problema.
A mamã Luban diz que a mulher que chamou é famosa por deixar
cicatrizes limpas e que, se Deus quiser, a Amal há de ficar perfeitamente bem,
com o tempo. A mamã Amaani diz que a mamã Luban não devia ter chamado uma velha
que não consegue ver a lua no céu, quanto mais um botão de rosa. Estou sentada
ao lado da Amal, na sombra da rakuba; elas estão na cozinha. Depois de a
mamã Luban sair, a mamã Amaani bufa e fica a falar sozinha. Pouco depois, põe a
tocar uma das suas cassetes e eu deixo de a ouvir.
Continuo a não saber o que é a purificação. Só sei que já não
consigo defender a baliza como deve ser, e não consigo saltar de pedra para
pedra ao longo do caminho. Demoro muito tempo a urinar. O chichi sai aos
pingos, quando antigamente saía como de uma torneira.
A mamã Luban diz que eu não devia continuar a jogar futebol.
1 Uma das amas do orfanato.
2 A boneca de pano.
3 Bilha de barro, usada para guardar e refrescar água.
4 Hejab – referência às roupas femininas tradicionais
do islamismo
5 Estrutura de lados abertos que proporciona
proteção contra o sol.
Wendy
Wallace e Leila Aziz
Filha do Pecado
Porto,
Edições ASA, 2011
(Excertos
adaptados)
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