sábado, 29 de março de 2014

Diário do Alentejo Edição 1666


Editorial
Palavras
Paulo Barriga

Vou arrepende-me longamente
de cada uma
e por cada uma das palavras
que aqui escrever. Mas
hoje tenho mesmo de dizer
que as palavras servem apenas
para enunciar o lado supérfluo
da vida, as ligeirezas da existência
humana, o ruído em geral.
Faz hoje oito dias, no Pax
Julia, que o Teatro do Mar, de
Sines, levou à cena uma peça
chamada “Âmbulo”. Uma dramaturgia
sem palavras em
torno da questão da emigração,
do abalar, das provações,
da solidão e do reencontro. O
espetáculo é inspirado na novela
gráfica Emigrantes (The
Arrival), do ilustrador australiano
Shaun Tan. E tanto no álbum
desenhado como nas tábuas
do palco, as palavras
não se dizem. Sequer por uma
única vez. Em seu lugar sobrevive
o gesto. O toque. A ação.
O olhar. Os sentidos e os sentimentos.
O silêncio, apenas.
Por regra, as palavras geram
imagens. Aqui, são as imagens
que procriam palavras.
Palavras interiores, perfeitas e
substantivas. Palavras de cada
um, ao uso de cada qual. Certa
vez José Saramago disse tudo
sobre elas: Cada um apenas
pensa com as palavras que conhece.
As palavras são sempre
íntimas, podem por vezes ser
intimistas, mas hoje, no tempo
da palavra total, as palavras
intimidam. Temos como válida,
aliás, a ideia que comunicação
é um sinónimo perfeito
de palavra. A palavra dita, mas
sobretudo a palavra escrita tomou
como seu e apenas seu o
ato comunicativo. A verbalização,
nomeadamente a que é
experimentada nos meios eletrónicos
e audiovisuais, é uma
espécie de surto viral que ataca
de forma devastadora um bem
cada vez mais raro e precioso
nas sociedades contemporâneas:
O silêncio. A extinção total
do silêncio, dos diferentes
silêncios, coincidirá com a propagação
definitiva da palavra.
O fim do silêncio originará, já
está a originar, uma nova civilização.
A civilização do homem
à máquina. Solitário mas
palavrosamente no centro do
mundo, a disparar palavras em
todas as direções, a receber palavras
de todos os quadrantes.
Quando afinal aquilo que reproduzimos
massivamente por
palavras não se diz nem se escreve:
Beijo, sorriso, abraço,
flor, adeus, lágrima. E tantas
outras palavras que apenas necessitariam
de duas pessoas,
pelo menos ou somente duas
pessoas, para construir um pedacinho
de silêncio.

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