quinta-feira, 24 de abril de 2014

Diário do Alentejo Edição 1670


Editorial
Vinte e zinco
Paulo Barriga


Este título inventou-o o escritor
moçambicano Mia
Couto para um breve romance
sobre os abanões que uma
pequena cidade ultramarina sofreu
com o abalo revolucionário
que se fez sentir na longínqua
Lisboa. Um ano e pouco mais
tarde, Moçambique também teve
o seu 25. O de junho de 1975, data
em que obteve a independência
face ao Portugal colonialista. A
esta distância, com lunetas graduadas
há 40 anos, é muito fácil
identificar um sem-fim de incongruências,
de precipitações, de erros
no processo de descolonização
da África lusófona. Mas talvez não
seja de todo esquisito relembrar
que uma das motivações, talvez a
maior delas, que mobilizou os capitães
para o golpe militar de Abril
de 1974 foi precisamente o agravar
dos conflitos africanos, o desnorte
eufórico nas políticas ultramarinas,
o pesado esforço de guerra,
pago, no fundamental, com sangue.
Sim, a descolonização está pejada
de equívocos e de tropeções.
Mas como poderia ter sido de outra
forma? Num Portugal em transe?
Abafado por 48 anos de ditadura,
enlutado pela guerra, silenciado
pela censura, atemorizado pela polícia
política, isolado pela comunidade
internacional? Vinte e zinco.
Um pequeno trocadilho com uma
carga simbólica monumental. O
“zinco” tem a ver com os telhados
das cabanas da aldeia onde decorre
a história, com a pobreza, com um
tempo presente que se deseja ardentemente
passado. É a metáfora
perfeita para embrulhar o 25
de Abril português, o dia primeiro
da liberdade, do sonho coletivo de
um povo, da reconstrução de uma
nação. O dia primeiro da democracia.
Inicialmente com os militares
na rua. E quase em simultâneo
com o povo a tomar conta da revolução.
Sem saber muito bem como
usar essa ferramenta inaugural da
democracia que é a liberdade de
expressão, a liberdade de manifestação,
a liberdade de opinião, o
direito total à palavra. E com ela,
com a palavra bem aberta, exigir
os restantes direitos que se não rimam
deveriam rimar com dignidade
humana: a saúde, o trabalho,
a justiça, a habitação, a educação, o
pão. A democracia, porque advém
do coletivo, é o mais perfeito, embora
o mais frágil sistema político
que o Homem alguma vez conseguiu
inventar. É um edifício em
permanente construção e, como
em qualquer obra, sempre sujeito
a melhoramentos e também a atrasos
e a derrapagens, mais ou menos
orquestradas pelos empreiteiros.
Como agora veementemente
acontece em Portugal. E nós, que
ainda somos os donos do prédio,
vamos permitir que estes pedreiros
manhosos terminem o telhado
com folhas de zinco?

Sem comentários: