quinta-feira, 3 de abril de 2014

Unidos na esperança

Nasci no sul do Sudão, onde vivia com os meus pais, os meus avós e duas irmãs, numa pequena casa feita de lama e colmo. A minha família era considerada abastada, porque o meu pai possuía muitas cabeças de gado.
Quando eu era criança, tinha medo de animais grandes.
— Sou demasiado pequeno para tomar conta de animais tão grandes! — exclamei, no dia em que o meu pai disse que teria de aprender a cuidar do gado. 
Mas o meu pai sorriu e animou-me:
— Garang, sê corajoso. Tens um coração e uma cabeça fortes. Não há nada que não consigas fazer.
Quando fiz oito anos, comecei, sozinho, a tomar conta de algumas pequenas vitelas. Limpava-as, cuidava delas quando estavam doentes, conduzia-as às melhores pastagens e bebedouros. Rapidamente aprendi a amar os animais.
Mal sabia que a minha vida iria mudar completamente.

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Um dia, quando estava a apascentar os animais longe de casa, a minha aldeia foi atacada. De onde estava, conseguia ouvir disparos e ver clarões. Vi um avião desenhar círculos no céu e levantarem-se nuvens de poeira, enquanto choviam balas sobre o meu rebanho. Muitos dos animais foram mortos e outros fugiram com medo. Embora tivesse a garganta e os olhos cheios de pó, consegui encontrar o caminho para a floresta, onde me escondi à sombra das árvores.
Assim que a tempestade de balas cessou, corri de volta para a aldeia para encontrar a minha família, mas não vi ninguém. Havia casas a arder e estava tudo destruído! Quando me pus a vaguear pela estrada, logo vi outros rapazes que também não conseguiam encontrar as famílias. Começámos a procurá-las juntos. À medida que caminhávamos, mais rapazes se associavam a nós.
No início, era apenas eu. Um. Em breve, um tornaram-se muitos. Demasiados para poderem ser contados. Antes de a guerra chegar, eu nunca tinha visto tanta gente junta num só local. A minha aldeia tinha apenas cem pessoas. Agora, fazia parte de uma aldeia em movimento com milhares de rapazes que, tal como eu, se encontravam a tomar conta do gado quando a guerra chegou. Os adultos e as raparigas tinham ficado para trás.
Alguns dos rapazes só tinham cinco anos de idade. Os mais velhos não passavam dos quinze. Éramos crianças habituadas a que cuidassem de nós. Sem os nossos pais, estávamos perdidos. Teríamos de aprender a cuidar uns dos outros.
Os rapazes mais velhos decidiram reunir-se.
— Temos de colaborar uns com os outros para poder sobreviver — disse um. — Vamos formar grupos e escolher um líder para cada um deles.
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Quando alguém chamou “Garang Deng!”, eu soube que tinha sido escolhido para liderar um grupo de trinta e cinco rapazes. Senti-me orgulhoso e, ao mesmo tempo, assustado. Sabia tomar conta de animais, não de rapazes; contudo, não queria que o meu medo me impedisse de ajudar os meus irmãos. Foi então que recordei as palavras do meu pai: “Garang, sê corajoso. Tens um coração e uma cabeça fortes. Não há nada que não consigas fazer.”
Juntei-me ao grupo de chefes e decidimos caminhar em direção à Etiópia. Antes de a guerra atingir as nossas aldeias, muitos de nós tinham ouvido os anciãos falar da Etiópia como um lugar onde as pessoas abrigariam os sudaneses que fugissem da guerra. Alguns dos rapazes mais velhos sabiam que, para lá chegar, tínhamos de viajar para leste. Era uma viagem longa e perigosa, mas era também a nossa única esperança.
Resolvemos caminhar de noite e dormir na floresta de dia, para evitar os soldados e o calor tórrido do sol. Muitos diziam que era demasiado perigoso caminhar durante a noite, devido aos animais que andavam à caça. Depois de uma longa discussão, concluímos que os soldados e os aviões eram mais perigosos do que os animais. Decidimos também que os rapazes mais velhos tomariam conta dos rapazes mais novos que não conseguissem sobreviver sozinhos. Escolhi um pequenito do meu grupo chamado Chuti Bol. Só tinha cinco anos e estava sempre a chorar pela mãe.
Na noite seguinte, encontrámos a estrada para a Etiópia. Ficámos contentes por ter uma lua cheia e brilhante a guiar-nos, embora fosse ainda muito escuro. Para nos assegurarmos de que não perderíamos ninguém, cada um dava a mão ao rapaz que ia à sua frente. O Chuti era demasiado pequeno para grandes caminhadas e, por isso, carregava-o com frequência às minhas costas. Todos sentiam cansaço e fome, mas ninguém se queixava. 
Havia alguns rapazes no meu grupo que sabiam encontrar frutos silvestres comestíveis e outros que sabiam caçar aves selvagens. Havia dias em que tínhamos comida para partilhar, embora quase sempre não encontrássemos nada para comer. Muitas vezes, comíamos apenas folhas e cascas de árvores. Encontrar comida, porém, não era o nosso único problema. O tempo quente e seco causava-nos muita sede: por vezes tínhamos de beber a própria urina para mantermos o corpo hidratado e alturas houve em que ficámos muito doentes. Por isso, descansávamos com frequência para que os rapazes mais novos pudessem acompanhar-nos.
Fazíamos muitas coisas para nos ajudar a esquecer a fome e as dores do corpo. Jogávamos alguns jogos e contávamos histórias. Também fazíamos figuras de animais com lama. Sobretudo animais de que tínhamos tomado conta. O Chuti ficou tão impressionado com o que lhe contei das minhas vitelinhas que insistiu que lhe esculpisse uma manada só para ele. Fiquei contente por ele gostar dos animais, embora fossem apenas feitos de lama.
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Uma noite, enquanto caminhávamos pela estrada, ouvi o Chuti a chorar. Peguei nele ao colo e perguntei-lhe o que se passava.
— Tenho medo de que me abandones, tal como os meus pais fizeram — soluçou. 
— Chuti, os teus pais não queriam deixar-te. Gostavam muito de ti. Perderam-te quando chegou a guerra. Mas não te preocupes, porque eu vou tomar conta de ti. O dia está a nascer e temos de encontrar um lugar à sombra para dormir. Precisamos de ter força para atravessar a fronteira com a Etiópia.
Deitei-o debaixo de uma árvore. O choro tinha-o cansado e adormeceu imediatamente. Deitado junto dele, pensava nos meus próprios pais e nas saudades que sentia deles.
Entrámos na Etiópia na noite seguinte. Todos os membros do meu grupo fizeram a travessia e senti-me orgulhoso. Houve grupos que não tiveram tanta sorte, porque muitos rapazes tinham morrido pelo caminho. As primeiras pessoas que encontrámos foram algumas mulheres a lavar roupa num rio. Ficaram surpreendidas por ver tantos rapazes sozinhos e assustados.
— Quem são estes rapazes perdidos? — perguntou uma anciã.
— Estamos a fugir da guerra — respondeu um dos nossos chefes.
— Têm um ar faminto e doente — comentou outra mulher. — Vamos mostrar-vos o caminho para o campo de refugiados.
— O que é um campo de refugiados? — perguntei.
As mulheres, afáveis, disseram-nos que um campo de refugiados é um local para pessoas cujo país não é seguro. Depois pararam de lavar e conduziram-nos até à estrada que levava ao campo.
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Uma vez lá, conhecemos um homem chamado Tom, oriundo dos Estados Unidos, que se dedicava a ajudar refugiados como nós.
— Farei tudo ao meu alcance para vos dar comida e abrigo — disse Tom.
E assim fez. Pela primeira vez em muito tempo pudemos comer todos os dias. Não que fosse muito (apenas lentilhas e farinha), mas, após meses de escassez quase total, estes alimentos pareciam um festim. Depois, deram-nos ferramentas para construirmos os nossos próprios abrigos de lama e colmo, que me pareceram autênticos palácios!   
Também tivemos a sorte de poder ir à escola. No início, não queríamos ter aulas. Só brincar e esquecer os tempos difíceis que tínhamos vivido. Os adultos tentaram subornar-nos com bolachas mas, mesmo assim, muitos rapazes não quiseram frequentar as aulas. Os adultos ficaram aborrecidos.
Certo dia, uma professora veio visitar-me.
— Garang, tens de te certificar de que o teu grupo vem todos os dias às aulas. A educação é muito importante e pode funcionar como um pai e uma mãe para vocês. É ela que, um dia, falará por vós, quando os vossos pais não puderem.
As palavras da professora recordaram-me o quanto eu sentia a falta dos meus pais. Então, decidi ir à escola para honrar a sua memória e para sentir que continuavam junto de mim. E o meu grupo também começou a frequentar as aulas, mesmo sem bolachas. 

A minha disciplina favorita era o Inglês. Como não tínhamos lápis e papel, eu escrevia os exercícios no pó com um pau. Também aprendemos a rezar e passámos a frequentar a igreja ao fim de semana. A fé dava-nos esperança e força. Começámos a dizer às pessoas “Não estou perdido. Deus sabe onde estou.”

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