sexta-feira, 23 de maio de 2014

Diário do Alentejo Edição 1674


Editorial
Europa
Paulo Barriga

Em 1986 andava eu tão deslumbrado
com a beleza dela,
como fascinado andou Zeus
assim que soube da sua existência.
A cegueira atingiu de tal forma
o pai dos deuses e dos homens que
habitaram a Grécia antiga, que o levou
a disfarçar-se de touro, para
raptar e para tomar para si a mais
bela de entre as belas: Europa. Já
os meus 18 anos não deram para
tanto. Deram para cantarolar com
entusiasmo o “Portugal na CEE”,
dos GNR. E deram para pensar que,
apesar de não ter caparro para fugir
com a Europa às costas, ela ali
estava, bela e disponível, para me
levar a mim e a todos nós ao colo.
Que maravilha. Que prodígio. Que
magnificência. O primeiro grande
contacto que tive com ela, com a
Europa, foi logo nos primeiros tempos
da sua chegada a Portugal. A
Europa ofereceu-me um fato-de-
-macaco, um subsídio e nove meses
de gestação de um curso de soldador
profissional, que decorreu em
pavilhões novos mandados construir
em Beja pela firma “Irmãos
Luzias”. Que tempos tão eufóricos.
Pelas mãos da Europa estava eu a
aprender uma profissão de futuro
e ainda por cima me pagavam para
tal. Bom, mas o futuro da minha
profissão de futuro não se mostrou
assim com tanto futuro quanto isso.
Mas logo a boa Europa se chegou ao
pé de mim, agora pela voz de um
trabalhador agrícola sindicalista,
que me aconselhou outra profissão
de futuro: tratorista. Ninguém,
como a Europa, teria tamanha sapiência
e visão. Tratorista. Bem bom,
pensei. E lá me deram outro fato-
-de-macaco, novo subsídio e a possibilidade
de conduzir durante seis
meses um caquético trator Ford,
que há muitos anos estava estacionado
e calado num casão que a reforma
agrária tinha na Salvada.
Ainda hoje guardo a carta de tratorista
como prova do grande amor
que por mim a Europa, naquela altura,
nutria. Tudo isto fazia sentido.
Muito sentido. O Portugal atrasado
e acabrunhado estava agora de fato-
-de-macaco, em formações remuneradas.
Enquanto os agentes produtivos
do País eram aconselhados a
não obrar, salvo seja, numa espécie
de set-aside global. Tudo em nome
da Europa que, para todos nós, augurava
um destino radioso. Uma
espécie de colónia, de parque natural
com indígenas pacíficos e tudo,
onde chegaria dinheiro para gastar
nos bens da própria Europa e, na
falta dele, dinheiro irreal vindo dos
bancos da mesma Europa. E cá nos
vemos chegados, como Zeus chegou
a Creta com a Europa às costas.
Literalmente. Mas com um grande
dilema, pelo menos da minha
parte: no domingo, quando reencontrar
a Europa na cabine de voto,
não sei que fato-de-macaco usar. O
amarelo-torrado de soldador? Ou o
azul-petróleo de tratorista?

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