sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Diário do Alentejo Edição 1692

Editorial
Trovoada
Paulo Barriga

O alentejano tem um afeto,
uma gentileza, muito
grande pelo tempo. Talvez
melhor: o alentejano tem um respeito
inflexível pelo tempo. Pelo
tempo que passa. Mas também pelo
tempo que faz. Do tempo, daquele
que passa, as horas, os dias, as estações,
as gerações, faz o alentejano
um uso tão avarento e apurado,
como se tivesse a desmanchar um
porco. Tudo se aproveita. Desde as
vísceras às boias de toicinho. Todas
as farripas de carne. E até os ossos
do tempo dão sabor a uma qualquer
cozedura. Costumam os estrangeiros
de Portugal, talvez por
isso mesmo, chacotear com o uso
que o alentejano faz do tempo que
passa. Chamam preguiça ao que
o alentejano entende por vagar.
Apelidam de lentidão aquilo que
o alentejano acredita ser a própria
razão de existir. Nomeiam de pachorrento
um ser que, afinal, apenas
tem uma questão muito profunda
e antiga com o tempo. Com
o tempo que passa. E, já agora, com
o tempo que faz. Com as soalheiras.
Com as ventanias. Com as cargas
de água. Aludir ao tempo que faz é
a melhor maneira que o alentejano
encontrou para matar o tempo que
passa. Dizem que foram os antigos
egípcios que inventaram as ciências
meteorológicas. Através da observação
obstinada, repetida, metódica
dos fenómenos atmosféricos.
Mas isso é porque nunca foi feita
uma investigação histórica e antropológica
profunda sobre o alentejano.
Assim, resta-nos a memória. E
as lembranças, transmitidas de geração
em geração, dizem-nos que
o alentejano sempre teve também
esse fraquinho pela adivinhação
climatérica. Se a tarde se põe assim,
amanhã está um calor que não se
pode. Se o vento sopra assado, vem
aí uma borrasca das antigas. Se as
nuvens se juntam daquela maneira
é porque a coisa não está lá muito
famosa. Nisto da predição do tempo
que faz, ninguém bate o alentejano.
Mais do que um adivinho, é um verdadeiro
sábio. Sensível como o mais
afinado dos anemómetros. Mesmo
o alentejano menos fadado para as
decifrações da geofísica acaba por
ser um verdadeiro especialista. Já
se disse que o alentejano gosta de
matar o tempo que passa falando
do tempo de faz. Há povos e culturas
que matam o tempo falando de
comida, do trabalho, da política. O
alentejano fala do tempo. Seja no
pino da canícula ou nas rijezas do
inverno. Seja na mercearia, no gabinete
ou na mesa da sueca. O alentejano
fala do tempo que faz porque o
percebe, porque o tenta prever, porque
sabe que nunca o poderá controlar.
E por isso o respeita com
uma religiosidade elevada ao grau
santíssimo. Sem alertas coloridos.
Nem alarmes. Para hoje dão trovoada.
Temos conversa para uma semana.
É assim…

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