sábado, 18 de outubro de 2014

Diário do Alentejo Edição 1695

Editorial
Fartura
Paulo Barriga

Havia um tipo de
Beringel, bêbedo, miserável,
pai de um rebanho
de moços pequenos,
esfomeados e sempre agarrados
às suas pernas, esmolando
qualquer coisinha, a quem a
plebe atribuía a seguinte frase:
“A minha é uma casa farta”!
Dito, assim, ao balcão de uma
taberna ou no encosto de uma
parede do largo, a coisa descambava
logo para a paródia.
O homem habitava uma decrépita
barraca zincada e sumida
nos subúrbios da vila,
mas não se fartava de gracejar
com a situação: “A minha
é uma casa farta”! Como assim?
“Eu estou farto de passar
fome, a minha mulher está
farta das minhas bebedeiras,
os moços estão fartos de mim
e da minha mulher… A minha
é uma casa farta!”. O povo
tem esta elasticidade formidável
para lidar com a desgraça.
Tem aquele jeitinho filosófico,
muito natural ou sobrenatural,
para segurar de frente o desconsolo.
“Não há fome que não
dê em fartura”, diz com a certeza
da fome e com a rara hipótese
da fartura. Este fim de semana,
o distrito de Beja é uma
casa farta e com fartura. Com
fartura de coisas para a alma e
para o espírito. Que é a forma
mais abonecada de falar em
feiras e festas e romarias e arraiais
e afins. Tão antigo como
a fome que dá em fartura é o
aproveitamento do terceiro
fim de semana de outubro para
cravar no chão de Castro Verde
as estacas da feira. É o tempo,
há séculos ininterrompido, de
os campaniços descerem à vila
com as romãs inchadas de mel,
com as balsas rebentando de
frutos secos, com as mantas
de lã pelos ombros e os varapaus
apertados nas mãos para
o que der-e-vier. Mas por estes
dias, a celebração festiva da
ruralidade deixou de ser coisa
exclusiva de Castro. Em Beja,
neste mesmo fim de semana,
o campo é outro. É a terra fértil,
a água, a nova agricultura,
as culturas emergentes, a modernidade
de mãos dadas com
as sabedorias antigas. E tudo o
que diga respeito ao campo e à
festa e que, ainda assim, falte
na Feira de Castro e na Rural
Beja, talvez possa ser encontrado
em Mértola. Nos pavilhões
da Feira da Caça. As feiras
no Alentejo estão como o
tempo no Alentejo costuma
estar. Pode levar um porradão
de tempo sem chover que
a água há de acabar por chegar
aos cântaros. De uma só vez. À
farta. Será que é por isso que se
chama fartura ao malacueco?

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