sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Diário do Alentejo Edição 1706


Editorial
Projeto
Paulo Barriga

Esta é a altura do ano em que
costumamos tecer com abundância
aquilo que, geneticamente,
estamos menos habilitados
a realizar: projetos. À meia-noite de
Ano Novo, em cima de uma cadeira,
com um copo de espumante duvidoso
na mão, com a cabeça já toldada
pelas dúvidas do próprio espumante
e com doze uvas passas na
outra mão, exercitamos o mais irrealista
e petulante dos rituais festivos
do solstício de inverno: a planificação
do ano que entra, sob a
forma de “desejos”. Elas invariavelmente
prometem perder uns quilitos.
Eles invariavelmente imaginam
perder uns quilitos. Embora ambos
tencionem perder uns quilitos recorrendo
a diferentes táticas e técnicas.
Fumar, nunca mais. Beber, muito
menos (vezes). Estar mais com os
amigos que restam para lá dos que
estão dentro do Facebook. Visitar a
família (qualquer dia os velhos deixam
de fazer projetos e as crianças
começam a fazê-los em cima de uma
cadeira e nem se dá conta do tempo
passar). Enfim, saúde para todos. E
dinheiro também, que hoje nada se
faz nem nada se tem sem dinheiro.
Naquilo que toca à projeção em si, ao
lançamento de ideias, à formulação
de “desejos”, até nem costumamos
ser muito maus, nem muito comedidos,
nem pouco criativos. A questão,
e aqui sim já entra a nossa desconjuntura
genética, é que o projeto,
como janeiro, leva, pelo menos, duas
caras. Uma é a que planifica. A outra
é a que concretiza. E é precisamente
esta, a que concretiza, a cara do projeto
que trazemos sempre deslavada
durante o ano inteiro. Apenas lhe tiramos
as remelas na noite de Ano
Novo, por breves instantes. Projetar,
em Portugal, é por norma sinónimo
de irrealismo, irresponsabilidade,
exagero, engano. Recorde-se, por
exemplo, o que aconteceu com o projeto
de governação em 2014. Como é
de sua obrigação, o Governo projetou
o ano com um plano de atividades,
para as quais estabeleceu valores
e quantias em dinheiro. É ao que
vulgarmente chamamos Orçamento
do Estado. Um documento que é elaborado
pelos ministros, todos juntos,
dentro de uma sala, num ébrio
festim, tipo reveillon, a que vulgarmente
chamamos Conselho de
Ministros. A farra, o ano passado,
foi de tal forma rija que o projeto governamental
teve que ser alterado
oito vezes ao longo da sua execução.
É o que vulgarmente chamamos
Orçamentos Retificativos. São assim
os nossos projetos. É assim que
projetamos. Foi assim que nos vimos
projetados na miséria coletiva.
Será assim que projetaremos 2015?
Talvez. Mas, já agora, deixo-vos um
projeto, em forma de “desejo”, que
tem tanto de esperança como de desdém,
e que é muito usual ali para os
lados de Cuba, por estas alturas do
ano: que Deus vos arrebente a todos
com saúde!

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