sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Diário do Alentejo Edição 1708

Editorial

Torquemada

Paulo Barriga

Sobre o atentado de Paris já
tudo foi dito. Ou quase tudo.
Um vil ataque contra a liberdade
de expressão e de imprensa.
Sem qualquer tipo de consideração
pela vida humana. Bárbaro e
inexplicável. Em nome de uma suposta
guerra santa contra a iconoclastia
ocidental. Enfim, um ato hediondo,
desprezível e anacrónico (se
é que a violência religiosa em algum
tempo fosse justificável). Já sobre as
lágrimas que correram após o golpe
terrorista e sobre quem as verteu
ainda há muito que se lhe diga. De
um dia para o outro todos acordámos
Charlie. Todos nos arreliámos
muito com a estocada traiçoeira
que pretendeu vitimar o mais intocável
e supostamente bem-amado
dos valores ocidentais: a liberdade
de expressão. Mas será que estaremos
todos, mesmo todos, de facto,
interessados em manter uma imprensa
livre? Plural? Sem preconceitos?
Interventiva? Acutilante? Muito
sinceramente, não me parece! Não é
necessário recorrer ao exemplo extremo
do “Charlie Hebdo”, que tem
aquela capacidade de nos desafiar
a nós próprios, os nossos preconceitos,
muitas vezes roçando o
mau-gosto, outras galgando a cerca
do bom senso, para perceber isso.
Mesmo o mais pequeno jornal de
província, ou principalmente esse,
sofre diariamente as mais vis sevícias
contra a sua autonomia editorial.
Não nos iludamos do contrário.
A dependência crónica dos meios
de comunicação social face aos poderes
económicos e políticos cria
um tipo de terrorismo invisível e
indizível que chega a ser sufocante.
Confrangedor. Manhoso. É triste
constatá-lo, mas a liberdade de imprensa
não tombou a 7 de janeiro de
2015, em Paris. Como agora a choramos.
A liberdade de imprensa, se
é que alguma vez tenha existido em
toda a sua plenitude, há muito que
estava enterrada. E agora, pela violência
dos factos, apenas foi feito
um elogio póstumo à sua memória.
Mais nada. Desde o dia em que
as notícias passaram a ser simples
produtos de mercearia. Desde a altura
em que os jornalistas mais “incómodos”
foram afastados e as redações
se encheram de estagiários e
de trabalhadores precários. Desde o
preciso instante em que as direções
dos meios de comunicação passaram
a ser meros fantoches nos dedos
das administrações, a liberdade
de imprensa sucumbiu. E esse instante,
esse dia e essa altura aconteceu
há muito tempo atrás. Sem ser
necessário disparar um único tiro
de metralhadora. Hoje impera no
jornalismo a teoria do “respeitinho”.
Da dependência. Do medo. Do terror.
Da autocensura. Impera no jornalismo
a narrativa dos terroristas
de Paris. Que é, na visão inversa dos
atores, a narrativa de Torquemada.
Em pleno século XXI.

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