sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Diário do Alentejo Edição 1710

Editorial
Oswiecim
Paulo Barriga
É muito provável que já existisse.
Mas há 20 anos atrás
não dispúnhamos dessa
ferramenta amiga e amável chamada
GPS. O que tornava a vida
do viajante um nadinha mais complexa.
Mais sinuosa. Mas também
mais comunicativa. Ou interativa.
Principalmente porque os mapas da
Europa, os bons, em formato de livro,
vinham legendados nas línguas
pátrias. Era um desses que tínhamos
no porta-luvas do Opel Corsa.
E também tínhamos uma vontade
grande de zarpar de Beja por esse
velho continente fora. Vontades que
se juntaram no verão de 1995. Três
rapazes na casa dos vinte e poucos.
Sacos-cama. Latas de conserva e
música em quantidades generosas.
Passaportes. Calças de ganga e tshirts
e loucura em porções suficientes.
Itinerário aleatório ou dependente
de dois fatores fundamentais:
existência de pousadas de juventude
para a pernoita. Ou existência de folia
rija para a desnoita. Barcelona.
Marselha. Monte Carlo. Génova.
Insbruque. Budapeste. Praga.
Bratislava. Cracóvia. Sempre dando
voltas ao mapa. Avançando e invertendo
a marcha. Rindo e gozando o
pagode. Cracóvia há 20 anos. O recente
desmembramento da Cortina
de Ferro oferecia o mundo inteiro à
cidade. Que o recebia com a urgência
dos condenados. Festiva e insaciavelmente.
Ávida, como se não
houvesse amanhã. E a cidade retribuía
ao mundo oferecendo-lhe um
papa para Roma. Cracóvia, em acelerada
e eufórica regeneração, voltava
a estar no mapa. E também estava
no nosso mapa. Com um risco
vermelho por baixo. E uma seta
a apontar para lá. Muito perto de
Cracóvia existe uma pequena aldeia
rural chamada Oswiecim. Para lá
dos hortejos, dos rebanhos de gado
e de algumas plantações de milho,
nada. A não ser um velho quartel
de artilharia que o exército polaco
abandonara há muito. Um forte que
os alemães recuperaram durante a
ocupação da região da Alta Silésia.
Como nós, os nazis também não
souberam ler no mapa Osweicim.
Para facilitar as coisas chamaramlhe
Auschwitz. Em 1995, corriam
precisamente 50 anos sobre a libertação
dos campos de extermínio de
Auschwitz pelas tropas do Exército
Vermelho. Tinha passado meio-século
sobre o fim do maior crime alguma
vez cometido contra a humanidade.
Em nome da pureza da raça.
Da intolerância. Do segregacionismo
baseado no ódio. Auschwitz
tinha agora um museu tormentoso.
Bem perto da exaltada Cracóvia.
Onde regressámos em silêncio. Um
silêncio que ainda agora de alguma
forma nos preenche. Agarrado à
memória. Inamovível. Talvez seja
essa a nossa forma de homenagear
as vítimas da intolerância. As de
ontem. Como as de hoje.
Ao Arlindo Morais e ao
Francisco Sobral

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