sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

As batatas da concórdia

Há muito, muito tempo, havia dois países. Um ficava a leste e o outro a oeste.
Um dia, declararam guerra um ao outro e ninguém mais teve tempo para se ocupar dos campos, das vacas e das galinhas. Era preciso afiar as espadas, fabricar balas de canhão, ou recoser os botões dos uniformes dos soldados.
Num vale situado entre os dois países, vivia uma mulher que queria ignorar a guerra. Tinha dois filhos, uma vaca, algumas galinhas, e um grande campo de batatas. Para proteger os filhos e o campo da guerra, construiu um muro em torno da propriedade. Os filhos adoravam a mãe e ajudavam-na a plantar e a colher as batatas. Também tomavam conta da vaca e das galinhas. Apreciavam ambos a macieza dos seus leitos e a tranquilidade da sua casa.
Por vezes perguntavam:
— Por que razão temos de viver rodeados por um muro?
Ao que a mãe respondia:
— Porque as batatas não cresceriam se sentissem o sopro do vento leste e o sopro do vento oeste.
Durante as frias noites de inverno, enquanto as tormentas e os combates sacudiam o céu e a terra, mãe e filhos comiam batatas cozidas na brasa. 




Os filhos cresceram.
Um dia, o mais velho olhou para leste e viu um regimento de soldados, que marchava de forma cadenciada. Virou-se para a mãe e exclamou, largando o saco de batatas:
— Olha-me só para aqueles belos uniformes vermelhos e para aquelas magníficas espadas!
A mãe replicou:
— Eu já vi uniformes vermelhos enlameados e rasgados, e espadas torcidas e quebradas. Não me aborreças com isso, filho, e continua a trabalhar. Fiz batatas novas com leite coalhado para o jantar.
— Estou farto de plantar batatas! Vou-me embora, mãe! — declarou o mais velho.
E desatou a correr para leste. No dia seguinte, o mais novo olhou para oeste e viu um regimento de soldados, que marchava de forma cadenciada. Virou-se para a mãe e exclamou, largando a enxada:
— Olhe-me só para aqueles belos uniformes azuis e para aquelas medalhas cintilantes!
— Eu já vi uniformes azuis cheios de buracos e de sangue, e medalhas enferrujadas nos campos de batalha. Continua a trabalhar, filho. Vou fazer um crepe de batata.
— Estou farto de arrancar ervas daninhas! Vou-me embora, mãe! — declarou o mais novo.
E desatou a correr para oeste.
A mulher ficou só e chorou amargamente.
Depois, trancou a porta e foi para o seu campo de batatas.



Os dois filhos tinham orgulho em ser soldados. Vestiam uniformes novos e tinham espadas e medalhas reluzentes. As raparigas lançavam-lhes flores à passagem. Um deles foi promovido a general do exército de leste, enquanto o outro se tornou comandante do exército de oeste. Travaram tantos combates!
Por vezes, depois de uma batalha, o general olhava para o uniforme enlameado e para a espada torta e recordava-se do leito macio e do gosto das batatas na brasa. E, por vezes, depois de uma batalha, o comandante olhava para o uniforme manchado e para as medalhas enferrujadas e recordava-se do campo de batatas e da lareira. A lembrança da mãe deixava-os muito tristes.
Os combates continuaram, deixando as terras queimadas e devastadas. Em breve, nada havia para comer, fosse a leste fosse a oeste.
— Temos fome! — queixavam-se os soldados do exército de leste.
O general conhecia um lugar onde havia comida.
— Queremos comer! — exigiam os soldados do exército de oeste.
O comandante conhecia um lugar onde podiam saciar-se.



Uma noite, os dois exércitos encaminharam-se para o vale onde vivia a mulher que cultivava batatas.
— Mãe, os meus soldados têm fome! — disse o filho mais velho, do lado leste do muro. — Precisamos de forças para ganhar a guerra!
— Mãe, os meus homens precisam de comer — disse o filho mais novo, do lado oeste do muro. — Dá-nos algumas batatas e lutaremos até vencer!
Um silêncio absoluto reinava do lado de lá do muro. Os soldados começaram a gritar:
— Batatas! Batatas! Derrubemos o muro e procuremos as batatas!
Os exércitos derrubaram o muro de um lado e do outro, e lançaram-se numa disputa pelas batatas. A casa ficou destruída, a vaca e as galinhas fugiram. No campo sacudido pela violência dos combates, os soldados gemiam de dor. O general e o comandante também estavam feridos. No meio de uma pilha de louça partida e de pedras, jazia, inerte, uma mulher. Quando o general e o comandante viram a mãe naquele estado, desataram a chorar.
— Mãe, a culpa é nossa! — lamentava-se o filho mais velho.
— Que fomos nós fazer! — soluçava o mais novo.
— Fala connosco! — pediam ambos.

♣♣♣♣

Os combates tinham cessado e os soldados estavam como que petrificados. Viam o general e o comandante em lágrimas, e pensavam nas suas próprias mães. Foi então que começaram, também eles, a chorar. Contudo, a mulher não morrera. Deixou que os soldados chorassem durante algum tempo, antes de se levantar e dizer:
— Embora tenham destruído a minha casa e o meu campo, não deixarei de vos alimentar. Tenho batatas que cheguem na cave, mas exijo que os combates cessem, que ajudem a restaurar a ordem, e que regressem para junto das vossas mães.
— Temos tanta fome e estamos tão cansados de lutar! — diziam uns.
— Faremos tudo o que nos disser! — diziam outros.
— Dê-nos algumas batatas, por favor! — pediram todos.
— Ó mãe, podias ter morrido! — disse o comandante.
— Estamos tão contentes que estejas viva! — alegrou-se o general. — Perdoa-nos, por favor!
— Vivam as batatas e vivam as mães! — gritavam os soldados, com a boca cheia.
Aos poucos, foram recobrando forças e começaram a cantar canções que as mães lhes tinham ensinado. Em breve, as melodias ressoavam de uma ponta a outra do país. 
Muitas mães reconheceram as vozes dos filhos e vieram, de todos os lados, para os abraçar.
Os soldados agradeceram as batatas, despediram-se da mulher, e regressaram a casa. Depois de terem tirado os uniformes, pediram à população que não mais afiasse as espadas ou fabricasse balas de canhão.
Os dois filhos enterraram as espadas e as medalhas, e ajudaram a mãe a plantar novas batatas.
Reconstruiram, com cuidado, a casa, mas nunca mais reconstruíram o muro.




Anita Lobel
Pommes de terre
Paris, Kaléidoscope, 2004

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