sexta-feira, 10 de abril de 2015

Diário do Alentejo Edição 1720

Editorial
Merdonho
Paulo Barriga

Os autarcas de Almodôvar,
Odemira e Ourique foram
apanhados na curva.
Assim como quem não quer a
coisa, a Associação de Produtores
de Aguardente de Medronho do
Barlavento Algarvio, que tem sede
em Monchique, decidiu propor à
Direção-Geral de Agricultura e
Desenvolvimento Rural a criação de
uma Indicação Geográfica Protegida
(IGP) denominada “Medronho do
Algarve”. Nada de muito especial,
nesta era de plena euforia, de plena
esquizofrenia, pelas marcas, pelos registos,
pelos selos, pelas certificações,
pelos rótulos. Nada de muito especial
não se desse o caso de a pretensão algarvia
incluir oito freguesias do Baixo
Alentejo, nomeadamente aquelas
com maior mancha de medronheiros
e onde o produto destilado é, de
forma comprovada e reconhecida, de
qualidade superior. Durante décadas
se tentou legitimar a produção e o comércio
desta espirituosa tão particular
e rara. Quando, por fim, o fabrico
e o consumo lícito de aguardente de
medronho se generalizou logo caiu
nas mãos do patobravismo. Ou do
chicoespertismo, como se preferir.
Neste, como noutros casos de registo
ilegítimo de bens patrimoniais e culturais
coletivos, materiais ou imateriais,
tem de haver regulação efetiva
contra os abusos, as usurpações e os
novos pseuso-evangelistas da propriedade
comum. O que não existe.
Efetivamente. E por isso se disse que
Almodôvar, Odemira e Ourique se
deixaram enrolar nesta verdadeira
peta de mau gosto. Mas não é caso
único. Olhe-se, por exemplo, para o
cante do tipo alentejano. Durante décadas
esquecido, entregue formalmente
aos “velhos” que ainda se iam
juntando aqui e ali em ranchos, e emprestado
informalmente a uma ou
outra rodada de taberna, de repente
virou um belo negócio para os zésde-
olhão cá da terra (também os há
por estas bandas e não são poucos). É
da mais elementar falta de ética (e de
vergonha na cara) que se registem em
nome próprio, como agora acontece
com abundância, letras tradicionais
com acrescentos de insignificante
pormenor e valor. Ou melodias corais
antigas a que se junta, na precisa nota
dominante, um ou outro despropositado
acorde instrumental. Da manhã
para a tarde, o cante foi apropriado
por uma bicharada que o tomou ou
quer tomar para si, amealhando direitos
de autor indevidos com uma
prática cultural que é de todos e de
ninguém. Também aqui é necessário
abrir a pestana. Também aqui é
necessário erguer uma entidade forte
e abrangente e consensual que possa
salvaguardar este bem precioso da
saciedade dos oportunistas de pacotilha.
Daqueles que ao fim do terceiro
ou quarto copinho, com o entaramelar
da língua, começam a dizer de si
e para si mesmos: Venha lá mais um
merdonho desses bons ali do Algarve
feitos aqui mesmo no Alentejo.

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