sexta-feira, 22 de maio de 2015

Diário do Alentejo Edição 1726

Editorial
Quarta
Paulo Barriga

Naquele tempo é que era.
Agora, parece que é tudo empacotado,
tipo refrescos Alsa
Drink ou pudins Boca Doce. É só juntar
água e já está! Naquele tempo é que
elas doíam. Tínhamos de cantar a tabuada
de trás para diante, de saber as estações
de caminhos-de-ferro na ponta
da língua e da linha, os reis de antigamente,
as serras e os rios da metrópole e
as províncias do ultramar como se não
houvesse amanhã, as irregularidades
dos verbos de forma regular… Naquele
tempo, a Quarta Classe fabricava homens
e mulheres para a vida ainda que
a vida fosse o que era. Obter a Quarta
Classe, após rigorosa examinação, com
direito a diploma em papel timbrado e
assinatura atestada sobre selo fiscal, era
sinónimo de conhecimento e de preparação.
Agora, parece que é tudo instantâneo.
Mas será mesmo? A minha
filha Maria esteve entre os 103 mil alunos
que esta semana realizaram as provas
de exame às unidades curriculares
de Português e de Matemática do 4.º
ano. Ao contrário dos avós, que poderiam
muito bem ser os autores de tudo
o que se disse até aqui, fez dois exames
e não apenas um. Isto para além das
provas de conhecimento que, internamente,
ainda terá que prestar a estas
mesmas matérias, assim como a
Estudo do Meio. É verdade, reconheçamos,
que não lhe pedirão no carvão do
lápis o nome das estações de comboio, o
que não imporia grande dificuldade em
função da aniquilação da rede ferroviária,
nem a denominação das regiões de
além-mar. Mas, quem olhar com atenção
e com desprendimento para os atuais
programas curriculares do 4.º ano,
com facilidade admitirá que as matérias
de hoje são aquelas que esgotámos,
a custo, no final do 6.º ano e, nalguns
casos, até mais adiante. Seria maçador
estar aqui a dissecar o extenso e complexo
plano de conteúdos adotado para
este nível de ensino, mas não deixa de
ser imperioso realçar algumas consequências
deste elaborado atentado.
Para dar vazão à matéria, os alunos entram
todos os dias às nove horas e saem
às 17 e 30, como qualquer bom trabalhador.
Chegam a casa e ainda têm, pelo
menos, mais duas horas de labuta suplementar.
Fins de semana, nem vê-los.
À antiga, Nuno Crato pode julgar que
está a produzir os homens e as mulheres
do futuro. Competentes, sabedores,
empreendedores, prontos a integrar as
engrenagens da máquina trituradora.
Mas está a esquecer o mais importante:
uma criança de 10 anos que não tem
tempo para ser precisamente criança,
para brincar, para sonhar, será sempre
um adulto diminuído. E tão ou mais
grave do que roubar a infância a todas
estas crianças, o esforço colossal que o
ministro lhes exige é perverso. Os pais
que não tem condições, por variadas
ordens de razão, nomeadamente culturais
ou financeiras, para dar acompanhamento
aos filhos, podem ter a
certeza que a exclusão começa hoje
mesmo. Esta escola, ideologicamente
alicerçada sobre a ortodoxia da exigência,
não é para todos. Tal como não era
no tempo em que elas doíam.

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