quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Diário do Alentejo Edição nº 1754


Editorial

Bichos

Paulo Barriga
A ignorância é uma verdadeira bombada de DDT sobre o bicho da inteligência. É verdade que há quem diga, como disse a escritora brasileira Clarice Lispector, que “felizes são os ignorantes”. O que me deixa um pedacinho mais descansado. Mas pouco. A minha ignorância em relação aos lagartos pintados era assustadora e assinalável. Já não é. Sempre achei que a figura e a decência do bicho lagarto era ridicularizada na lengalenga que ensina as cores às crianças. Que era despropositado e até deselegante o lagarto aparecer pintado e cantado na saia da Carolina. Que os chineses e outros vendedores de pechisbeques eram irrealistas quando no Carnaval enganavam as crianças com lagartos coloridos, nada assustadores, por sinal. Lagartos pintados? Mas que raio de parvoíce. Estava um destes dias sentado numa esplanada muito senhor da minha ignorância quando me viro para trás e deparo com uma parede pintada com... lagartos pintados. Vermelhos, azuis, amarelos às pintinhas, arroxeados, laranja- -florescente. Tal e qual como os que se vendem nas lojas orientais, tal e qual como os que a Carolina traz na saia. Tal e qual... Muito pior do que viver alegremente na ignorância é a chegada abrupta da razão. Violenta. Avassaladora. Lagartos pintados. Aos magotes. Nas paredes e nos jardins da capital da Namíbia. Esse país, também ele a roçar o irreal, onde os bichos não se importam de partilhar o território com os homens. A Namíbia é um dos maiores países africanos e um dos menos populosos do mundo. Desértico, em boa parte. E com uma cidade plantada no meio dos sertões e da savana. Onde nos outros sítios há jardins de bichos no meio das cidades dos homens, aqui há um jardim com homens no meio do zoológico global. A Namíbia é uma espécie de reserva natural da esperança humana. O único local do mundo onde o homem não é uma praga, é apenas mais um bicho, tal como os lagartos pintados o são. Talvez tenha sido por isso mesmo que a Unesco levou para lá este ano a sessão sobre o Património Imaterial. Os cientistas sociais do mundo andam à procura, no pó dos desertos da civilização, dos caminhos que façam regressar o homem à sua elementaridade. A candidatura dos chocalhos revela essa preocupação. Reconhecendo essa prática humana quase morta, pode salvar-se o que ainda resta de um mundo em acelerado processo de extinção: o mundo em que entre os bichos também existiam alguns que eram humanos. Numa altura em que o homem caça e dizima o próprio homem, na Namíbia, por estes dias, o homem quis apenas compreender-se a si próprio enquanto bicho, dando simplesmente caça à ignorância. Para que os lagartos não deixem de aparecer pintados na saia da Carolina, ó-i-ó-ai.

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