quinta-feira, 10 de março de 2016

Diário do Alentejo Edição 1768

Editorial
O ovo estrelado
Paulo Barriga

Sim, é verdade, acabei por
não resistir. Foi mais forte
do que eu, o impulso.
Estive esta terça no lançamento
do livro do momento: Alentejo
Prometido, de Henrique Raposo.
Entrei na livraria na qualidade de
jornalista. E saí lá de dentro enquanto
ativista ou intervencionista
ou indignado ou algo que
o valha. É que os Cantadores do
Desassossego, como forma de protesto
contra o teor desta obra, decidiram
interromper momentaneamente
a sessão, cantando a moda
“Alentejo, Alentejo” (é pena os nervos
terem traído a afinação, mas
pronto). Finda a qual viraram as
costas ao autor e abandonaram a
sala de forma pacífica e ordeira. E
eu cantei e saí com eles. E de outra
maneira não poderia ter sido.
Porquê? Porque também a mim o
livro de Henrique Raposo incomodou.
Ofendeu. Tirou do sério. Não
tanto pelos temas que lá são retratados,
mas antes pela reutilização
rancorosa, preconceituosa, generalista,
anacrónica e quase sempre
delirante que Henrique Raposo
faz dos mesmos. Mas pronto, o rapaz
já mostrou o que é e ao que
vem e, acima de tudo, com quem
se dá. E a minha indignação não é
tanto com ele, nem com o livrinho
dele, nem com as suas parvoíces,
as quais tem todo o direito de publicar,
mas com alguns tipos com
quem se dá. Aquilo que mais me
irrita nesses gajos é a encenação, a
dramaturgia e a narrativa puritana
que criaram em torno desta espécie
de happening de baixo teor intelectual.
As pessoas com quem
Henrique Raposo se dá, essencialmente
jornalistas, foram rápidas
e perspicazes em reconhecer
uma intifada nas reações enérgicas
ao livro. Foram lestas a exibir
um maluquinho que queima listas
telefónicas como exemplo dos novos
Torquemadas. Foram taxativas
em observar que este é um momento
de verdadeiro perigo para a
liberdade de expressão e, em consequência,
para o próprio jornalismo.
Mas nenhuma delas se deu
ao trabalho de questionar ou de
confrontar ou de investigar as
“verdades absolutas” que Henrique
Raposo diz ter reunido em livro. A
não ser que não tenha qualquer interesse
jornalístico o facto de, segundo
Henrique Raposo, existir
uma região de Portugal que convive
alegremente com o suicídio,
uma cultura onde as mulheres são
repetidamente violadas, um tecido
social que nem conhece a palavra
criança ou um território em estado
de pré-guerra. E onde historicamente
se servem ovos estrelados ao
pequeno-almoço, esse ritual negro
que vem do fim dos tempos e que
só demonstra como o alentejano
consegue ser perverso até na sua
dieta. Só para chatear ainda mais o
Henrique Raposo. Chiça.

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