domingo, 1 de janeiro de 2012

Como pode o Cante sobreviver aos seus criadores

Tratando-se de manter vivo o Cante, seria insensato apostar para tal na manutenção de colectividades sólidas e activas de trabalhadores rurais sem terra, dispersas num vasto território e relativamente isoladas, como as que foram as criadoras e portadoras do Cante alentejano, para garantir a salvaguarda e a transmissão às novas gerações. Essas colectividades, se não desapareceram de todo, extinguem-se a passos rápidos.


Assim sendo, a solução só pode vir da transmissão dos saberes do Cante para além do contexto de origem. Os problemas que se colocam são de ordem económica, técnica e simbólica. Deixemos por ora de lado as questões económicas (os recursos necessários), porque as soluções são mais óbvias. Muito mais difíceis são as questões técnicas e simbólicas.



Os contextos da transmissão



É comum a ideia de que “se nasce” – ou não – com o dom de bem cantar o Cante (ou o Flamenco, etc.), e que aqueles que hoje cantam são os que possuem esse dom inato, o que exclui a aprendizagem deliberada. Mas assim que o inquérito de terreno aprofunda as “carreiras” dos cantadores, encontramos quase sempre a presença dum mestre, ou dum grupo que age, ao integrar um novo elemento, como um mestre colectivo.

O grupo surgia mais como um contexto de aprendizagem do que como lugar de transmissão deliberada, o que, a par com a homogeneidade cultural entre os mestres (ou as pessoas experientes, os bons cantadores) e os aprendizes, explica a relativa invisibilidade do processo de aprendizagem e até do ensinamento.

Estes contextos de aprendizagem espontânea eram numerosos e muito diversos. A socialização ao Cante (à sua musicalidade própria) prolongava-se sem interrupção (“na nossa família toda a gente cantava”) da infância à idade adulta. Trabalho, festas, tabernas, os contextos informais eram múltiplos e os que “tinham jeito” eram encorajados, solicitados. Esses contextos informais tornaram-se cada vez mais raros e o saber deixa de renovar-se pela aprendizagem espontânea.

É pois necessário criar mecanismos e modalidades de transmissão (por aprendizagem) prática que possam substituir progressivamente as formas de transmissão que se extinguem.

Diferentes da simples imersão e do contacto informal, as modalidades a promover são várias. Entre elas podemos sugerir, dois tipos: “escolas de cante” e “cante nas escolas”.

- As primeiras, sendo especializadas no Cante, podem dispensar formação para grupos de aprendizagem em redor de mestres ou de praticantes reconhecidos como peritos, e/ou estágios intensivos que associem mestres tradicionais e docentes de outras origens; este tipo de soluções já teve algumas realizações, mas não mobilizaram os mestres tradicionais e portanto são muito limitadas. Verdadeiros estágios, planeados e função de objectivos de transmissão, admitindo “aprendizes” alentejanos, portugueses de outras paragens, e estrangeiros, com ou sem conhecimentos musicais teóricos e práticos deveriam ser organizados em torno dos mestres tradicionais.

- As soluções do segundo tipo consistem na introdução do Cante nos currículos universitários, ou em pequenos cursos especializados, e/ou nas escolas.

Todos sabemos que vários projectos deste tipo têm sido implementados pelas autarquias (Moura, Mourão, Vidigueira, Serpa, etc.). A adesão das famílias e das crianças é variável, mas coloca-se sobretudo a questão da qualificação dos mestres, garantia da qualidade do que será transmitido.

O “transporte” de formas culturais populares, orais, (de definição difusa e sujeitas a variações locais e individuais que eram uma parte da sua riqueza e da sua vitalidade), para contextos formais, eruditos ou pelo menos integrando noções e instrumentos teóricos eruditos, é uma via perigosa.

Esse perigo manifesta-se desde já nas tentativas escolares, que podem acentuar o movimento de “deriva” da forma cultural, orientando-a em direcções que dependem da concepção teórica e prática (quando a têm) que os “novos mestres” veiculam.

O desafio consiste menos no facto de a estrutura do processo de transmissão ser mais formal, mais “escolar” do que na própria distância cultural entre os detentores dos saberes práticos (o canto) e os novos públicos que podem ser envolvidos na transmissão.

A formação dos mestres torna-se crucial, dada a dificuldade de assimilar certas tradições complexas, difíceis de enunciar pelos melhores praticantes, por serem saberes tácitos.

Aos mestres antigos, pode faltar a capacidade para comunicar com populações de aprendizes que lhe são pouco familiares e podem ter dificuldade em integrar-se em processos de formação mais formais. Por seu turno, os mestres oriundos dos saberes eruditos precisariam de longas formações para assimilar versões não simplificadoras, não dogmáticas, dos saberes de tradição oral.

Mas esta via, apesar dos seus perigos (transmitir ideias e modalidades de prática que se afastem do núcleo conceptual da forma cultural) é tão inevitável como a necessidade de criar novos contextos de transmissão.



O obstáculo simbólico: O Cante coisa de velhos, de trabalhadores analfabetos? Ou tesouro de todos?

Muitas das formas culturais que hoje figuram nas listas do património imaterial da Unesco foram criadas por grupos sociais minoritários, entre os mais pobres e oprimidos (Tango dos bairros pobres de Buenos Aires e Montevideu, Tango de La Plata, Fado dos meios mais pobres de Lisboa e até das pessoas de “má vida”, Flamenco dos Ciganos andaluzes, etc.).

Para garantirem o reconhecimento do seu valor e a sua sobrevivência todos tiveram que atravessar fronteiras sociais, libertar-se da imagem de marginalidade que as suas origens lhe impunham e tornar-se atraentes para outros grupos ou até sociedades inteiras (ver o exemplo do Tango ou o do Fado).

Este é sem dúvida um dos maiores obstáculos actuais à transmissão e à disseminação do Cante, nomeadamente entre as jovens gerações alentejanas. Só se aprende (se aceita, se procura aprender) o que valoriza quem aprende.

Tarefa difícil, valorizar o Cante como algo que vale por si mesmo, forma cultural musical cuja prática pode deixar de estar associada em exclusivo aos que a criaram e interessar sociedades inteiras, como algo que faz parte dum tesouro comum e não só dum grupo restrito, é a primeira barreira que tem que ser transposta: mas há muitas décadas que o cante tem sido considerado no próprio Alentejo como uma música dos pobres, marginal na sua própria terra.

Para vencer o preconceito, é indispensável que os recursos científicos (musicológicos, antropológicos, literários, históricos) sejam mobilizados com este objectivo explícito: reconhecer o valor do Cante não como uma (bela) curiosidade de tempos idos e de velhos rurais, mas como uma matriz de práticas e de criação contemporâneas. Só a criação de lugares que associem o rigor e o prestígio da investigação antropológica e musical à simplicidade e à atenção ao Cante antigo poderá renovar a imagem do Cante.



Projecto “Dinâmicas do “cante” na cultura popular alentejana”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) – FCOMP-01-0124-FEDER-007036. No âmbito do CIDEHUS-UÉ – Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora, em parceria com a Associação “A Moda”.

1 comentário:

Totuus disse...

Ao Cante Alentejano resta sobreviver na alma de todos os alentejanos por cada vez que em convívio cantamos as modas da nossa terra!