sexta-feira, 18 de maio de 2012

Diário do Alentejo Edição 1569

Editorial
Caracóis
Paulo Barriga
A
única certeza que a natureza

nos dá, faça sol ou

borrasca, é que por esta

altura nunca nos faltam. Os caracóis.

Os belos caracóis que deambulam

pelas ervas tenras no

fresco da noite. E que de dia se

apegam com assinalável alento às

folhas dos cardos. Protetoras, estas.

Previdentes, contra a violência

do astro. Dissuasoras, contra

a voracidade dos homens. Se bem

que, desde o advento dos viveiros,

os caracóis, os nossos belos e viçosos

caracóis, andam com vidas

muito mais tranquilas. Apanhar

caracóis dá trabalho, muito trabalho.

Requer empenho, persistência,

empreendimento. Que são

três das palavras que os estrangeiros

que nos emprestam dinheiro

acham que não sabemos conjugar.

Ou que, pelo menos, não gostamos

de conjugar. Estão enganados,

no que toca ao caracol. É que

comê-los também dá um trabalho

do caneco. E não há neste Alentejo

quem não se empenhe com afinco

nessa ágil função. Mas já no que

toca à apanha e aos preparos do

petisco, a coisa muda de figura.

Ainda há bem pouco tempo não

havia café, taberna, venda ou casa

de pasto que não preparasse os

seus próprios caracóis. Alterando

aqui e ali, em segredo, uma receita

que não vai muito além de

um simples caldo de orégãos. Mas

conferindo-lhes sempre um toque

muito pessoal, muito próprio.

Uma tarde de caracolada, daquelas

à séria, exigia uma espécie de

procissão por, pelo menos, meia -

-dúzia de catedrais. A poder de

minis ou de copos de branco.

Hoje, não apenas são os bichos alimentados

em estufas como, imagine-

se, são confecionados no

mesmo local e distribuídos industrialmente

pelas diferentes esplanadas

e balcões. Nunca estão mais

salgados uns que os outros. Mais

ou menos picantes. Mais ou menos

limpos. Melhor ou pior lavados.

Não são maiores nem mais

pequenos. Nem mais ou menos

amargos, dependendo das ervas

que lhes serviram de dieta. São

apenas aparentemente caracóis,

com casca e tudo, gémeos uns dos

outros. Caros por igual. A massificação

do caracol de aviário veio,

por fim, dar razão à velha piada

taberneira que põe os caracóis ao

nível do marisco. Marisco do restolho.

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