Editorial
Caracóis
Paulo Barriga
Aúnica certeza que a natureza
nos dá, faça sol ou
borrasca, é que por esta
altura nunca nos faltam. Os caracóis.
Os belos caracóis que deambulam
pelas ervas tenras no
fresco da noite. E que de dia se
apegam com assinalável alento às
folhas dos cardos. Protetoras, estas.
Previdentes, contra a violência
do astro. Dissuasoras, contra
a voracidade dos homens. Se bem
que, desde o advento dos viveiros,
os caracóis, os nossos belos e viçosos
caracóis, andam com vidas
muito mais tranquilas. Apanhar
caracóis dá trabalho, muito trabalho.
Requer empenho, persistência,
empreendimento. Que são
três das palavras que os estrangeiros
que nos emprestam dinheiro
acham que não sabemos conjugar.
Ou que, pelo menos, não gostamos
de conjugar. Estão enganados,
no que toca ao caracol. É que
comê-los também dá um trabalho
do caneco. E não há neste Alentejo
quem não se empenhe com afinco
nessa ágil função. Mas já no que
toca à apanha e aos preparos do
petisco, a coisa muda de figura.
Ainda há bem pouco tempo não
havia café, taberna, venda ou casa
de pasto que não preparasse os
seus próprios caracóis. Alterando
aqui e ali, em segredo, uma receita
que não vai muito além de
um simples caldo de orégãos. Mas
conferindo-lhes sempre um toque
muito pessoal, muito próprio.
Uma tarde de caracolada, daquelas
à séria, exigia uma espécie de
procissão por, pelo menos, meia -
-dúzia de catedrais. A poder de
minis ou de copos de branco.
Hoje, não apenas são os bichos alimentados
em estufas como, imagine-
se, são confecionados no
mesmo local e distribuídos industrialmente
pelas diferentes esplanadas
e balcões. Nunca estão mais
salgados uns que os outros. Mais
ou menos picantes. Mais ou menos
limpos. Melhor ou pior lavados.
Não são maiores nem mais
pequenos. Nem mais ou menos
amargos, dependendo das ervas
que lhes serviram de dieta. São
apenas aparentemente caracóis,
com casca e tudo, gémeos uns dos
outros. Caros por igual. A massificação
do caracol de aviário veio,
por fim, dar razão à velha piada
taberneira que põe os caracóis ao
nível do marisco. Marisco do restolho.
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