quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Diário do Alentejo Edição 1660

Editorial
Carta
Paulo Barriga

Que é feito de nós? O
que nos aconteceu? Há
tanto tempo que não
nos vemos sem ser nas fotografias
antigas. Ou nos velórios.
Que bonitos e jovens e alegres
que fomos. Que idade tínhamos?
Tínhamos a idade da escrita.
A idade do tempo da escrita. A
idade do tempo da saudade que
a escrita não matava mas aligeirava.
Hoje não recebemos nenhuma
carta. Na verdade, há
quanto tempo não recebemos
uma carta? Há tanto tempo que
não nos vemos nas nossas letras.
E que não nos rimos nas nossas
letras. E que não choramos com
as nossas letras. Antes estávamos
longe, muito longe, uns dos
outros. Mas nunca deixámos de
estar por perto. Nunca deixámos
de querer estar por perto.
Hoje estamos tão perto e tão
longe de nós próprios que estamos.
“É assim a vida”, dizemos
para dentro do nosso próprio
egoísmo. Para dentro da nossa
própria solidão. Chegou carta da
Alemanha. Traz alguns marcos
espalmados junto à folha pautada
das notícias. “Como estão
as coisas? Espero que vão da
melhor forma. Nós por cá tudo
bem. Pensamos ir aí pelo Natal”.
Vieram. Vinham sempre que
podiam. Que belas eram as tabletes
de chocolates que traziam
quando vinham. E os sorrisos.
E as histórias dos dias difíceis.
Da superação dos dias difíceis.
Narradas com um nadinha de
sotaque frio agora misturado
com o velho sotaque quente do
Alentejo. “E vocês, como vão? Os
moços estão crescidos”. “Vamos
como Deus quer e os homens
nos deixam ir”. Que é feito de
nós? Da nossa família? Da amizade
infinita da nossa família?
Que antes galgava continentes
e fronteiras e línguas esquisitas
em troca de um simples abraço?
E que hoje está atomizada na indiferença?
Na solidão? Será que
a vida é mesmo assim? Será que
na nossa moderna agitação já
não há vagar para escutar os velhos
com ouvidos de escutar?
Será que já não há vagar para ensinar
os rapazes a assobiar, a subir
às árvores, a atirar fisgadas
aos pássaros ou aos cães vadios?
E para cantar? Há quanto tempo
não cantamos juntos? Nem brincamos?
Nem sopramos pelos
cantos da boca migalhas de filhoses
ou de popias caiadas ou
de suspiros de claras em castelo?
Há tanto tempo que não nos vemos
sem ser nas fotografias antigas.
O que nos aconteceu? Será
que ainda vamos a tempo?
Dedico esta carta aos meus
primos Manuel Luís, Ana e
Manuel, recentemente falecidos,
e aos que lhes sobreviveram na
certeza que sim, ainda vamos a
tempo!

1 comentário:

Ana Maria disse...

muito bom, só verdade, como sempre. Dantes havia tempo para tudo, agora estamos à distância de um clic mas estamo-nos borrifando, a entre ajuda a partilha e até mesmo os laços que uniam as famílias vão-se desvanecendo. É tudo fruto da nossa inércia do nosso comodismo, e não me venham dizer que não temos tempo, porque temos, só que para aquilo que nos convém.