sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Diário do Alentejo Edição 1697

Editorial
Paris
Paulo Barriga

Que se calem os acordeonistas
vadios de
Montmartre. Os realejos
e as gaitas-de-beiços. Que se
silencie o carrilhão do Ângelus
de Notre-Dame. Que se baixem
as saias ao cancan marialva do
Pigalle e da Place Clichy. Que se
encerrem as portas do Olympia.
E que se detenham, por um instante
que seja, os cantores românticos
do Sena. E que, nesse
preciso momento, se emudeçam
nos cafés do Quartier Latin as
gravações antigas de Gainsbourg,
Piaf, Brassens ou Aznavour.
Para que Paris consinta. Oiça.
Entenda. Para que Paris possa
escutar, entre 24 e 28 de novembro,
as modas que se costumam
cantar no Alentejo. O cante, essa
expressão cultural única e agregadora
do ser alentejano, vai a
Paris por esses dias. Vai lá, toante
e arrastada, para que a inscrevam
na Lista Representativa
do Património Cultural Imaterial
da Humanidade. Como se tal
fosse necessário. Como se este
“bem candidatável” não fosse já,
sempre e por si, património do
mundo. Mas é em Paris que está a
sede da Unesco. E é a Unesco que
tem um Comité do Património
Imaterial. E foi a este comité que,
durante esta semana, uma comissão
internacional de especialistas
disse que a candidatura do cante
reunia todas as condições para
ser validada. Logo é em Paris que
o fulgor do cante se fará ouvir em
voz alta, tal como os trinados do
fado se fizeram escutar em 2011.
Ano, aliás, em que se começou a
solidificar seriamente a ideia de
candidatar o cante a Património
da Humanidade. Uma candidatura
que teve grandes avanços e
recuos. Que meteu alta política
e traição. Que envolveu diplomacia
internacional e invejas.
Que começou pela rama e acabou
na plenitude. Que desuniu
políticos e ajuntou os grupos corais.
Que, nestes últimos quatro
anos, inspirou cineastas, encenadores,
artistas plásticos, escritores
e, acima de tudo, músicos de
toda a partitura e feitio. Mesmo
antes de escutar o porte-parole da
Unesco a anunciar o cante como
Património Cultural Imaterial
da Humanidade há algo que a
esta iniciativa de candidatura
se tem de reconhecer com firmeza:
nunca, como hoje, o cante
teve tanto vigor, tantos adeptos
e tão novos, esteve tão na moda.
E é essa vitalidade, a par da tradição,
que valerá uma ida sorridente
a Paris. Não esquecendo
que esta não é a última, mas antes
a primeira paragem da longa
viagem em torno da salvaguarda
do cante alentejano. E não esquecendo,
já agora, que o cante não
tem donos, para lá daqueles que
o cantam.

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