sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Diário do Alentejo Edição 1703

Editorial
Milhões
Paulo Barriga

É o sexto ano consecutivo
que a Porto Editora propõe,
por estas alturas do calendário,
um concurso para encontrar
a palavra do ano. Bem sabemos
que “as palavras não enchem
a barriga”, mas à falta de melhor
alimento sempre podem distrair
a fome. Ou a alma. Os promotores
da competição selecionaram
para a final dez das palavras
que, supostamente, mais marcaram
o ano mediático de 2014.
São elas: “banco”, “basqueiro”,
“cibervadiagem”, “corrupção”,
“ébola”, “legionela”, “gamificação”,
“jihadismo”, “selfie” e “xurdir”.
Observando agora mesmo
a reação do corretor ortográfico
às palavras propostas pela Porto
Editora, excluindo “ébola”, reparo
no desagrado (ou desconhecimento)
que o meu revisor eletrónico
usa face a quase todos os outros
vocábulos. Apenas “banco”,
“corrupção” e “xurdir” escapam à
sua desaprovação, que é manifestada
por um irritante sublinhado
vermelho. Esta máquina ou não
está para neologismos ou então
está com vontade, ela própria, de
comunicar. De desabafar. De desembuchar,
pensei eu. E, de facto,
não deixa de ser curioso que, no
preciso dia em que houve maratona
na Assembleia da República
para escutar o “jihadismo” financeiro
do “dono disto tudo” e do
“primo do dono disto tudo”, um
dos termos que o meu interlocutor
cibernético toma como bom é
precisamente “banco”. E, logo depois,
“corrupção”. “Corrupção”
e “banco”. Voltando às audições
dos Espírito Santo no Parlamento,
por muito tortos que tenham estado
um perante o outro, se há
coisa que incrivelmente não ficou
na “selfie” do dia foi a ligação direta
entre “banco” e “corrupção”.
Quero dizer, ter ficado, ficou. Só
que, como nos policiais de fraco
enredo, o criminoso antecipadamente
anunciado foi o mordomo.
Sobre os milhões que desapareceram,
como desapareceram, onde
param, quem os arrecadou em
proveito próprio, nada. O que restou
desta inquirição ilusionista foi
outra palavra que merecia constar,
e não consta, do jogo das palavras
do ano: “milhões”. Nunca
se ouviu falar tanto em “milhões”,
ou melhor, “em milhares de milhões”
como na última terça-feira.
E o único significado que se reteve
sobre “milhões” foi: “qualquer
coisa que talvez tenha existido
na posse de alguém em parte incerta”.
Como bem sabemos, o advérbio
“talvez” indica uma forte
possibilidade. E essa forte possibilidade
está e continuará a recair
sobre quem tem de “xurdir”. Que
é a palavra a concurso que designa
“lutar pela vida”. Os computadores
são máquinas inteligentes.

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