sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Diário do Alentejo Edição nº 1702

Editorial 
Ressaca 
Paulo Barriga 

O Alentejo, o mundo alentejano, ainda não estará, por certo, recomposto da onda de euforia que se sucedeu à inscrição do cante na lista representativa do Património da Humanidade. Não é para menos. O cante é a mais ampla e agregadora expressão cultural do Alentejo. É algo que nasce pegado às pessoas, como se fosse uma segunda pele, sonora, necessária, fundamental. E por isso mesmo os membros do comité intergovernamental da Unesco terão selado com o carimbo “exemplar” a candidatura portuguesa. O tempo é de festa, ainda. Mas depois da farra virá a necessária ressaca. Esta elevação do cante a Património da Humanidade é apenas um passo, festivo e admirável como todos os primeiros passos, na longa caminhada que se lhe apresenta pela frente. Aliás, no documento final da admissão do cante à lista do Património Cultural Imaterial, os relatores são bastante assertivos a esse respeito. Sim, de facto, a candidatura apresentada em Paris satisfaz exemplarmente os critérios de inscrição. Que poderão ser revistos já daqui a três anos caso não se cumpra o plano de salvaguarda enunciado na própria candidatura. E nessas medidas de salvaguarda, o documento é muito claro em relação a elas, passam pelo reforço da promoção deste “bem” através de exposições, espetáculos, programas educativos e, acima de tudo, reuniões entre os vários “detentores” deste património, por forma a partilhar os diferentes conhecimentos sobre o cante. Ou seja: a candidatura do cante foi aceite, em parte, porque revelava um compromisso das comunidades e dos grupos corais na implementação do plano de salvaguarda. Por outras palavras: esta candidatura terá validade desde que, a partir de agora, todos os agentes no território se comprometam a cantar em uníssono e não em capelinhas, com protagonismos saloios, birras e amuos, como até aqui, de alguma forma, tem acontecido. E este compromisso de união poderá ser o primeiro tapete de espinhos no caminho do cante enquanto património de toda a humanidade. Outra fator importante prende-se com o papel do Estado na implementação do plano de salvaguarda do cante. Diz o comité da Unesco que o Estado está “implicado” no seu financiamento. E aqui a porca pode voltar a torcer o rabo. Bem sabemos como o Estado de proximidade, as autarquias locais, aquelas que mais vizinhas são do cante e melhor o sentem, estão descapitalizadas. E ainda melhor sabemos o trato que o Estado central tem dado nos últimos anos às regiões periféricas e à cultura. Há falta de um governo territorial, regionalizado, é de bom-tom principiarmos todos, em conjunto, como exige a Unesco, a curar a ressaca da festa e a começar a olhar já sem embriaguez para o caminho. Que será longo e duro, embora estupendo se conseguirmos lá chegar. À essência do cante.

Foto: Editorial 
Ressaca 
Paulo Barriga 

O Alentejo, o mundo alentejano, ainda não estará, por certo, recomposto da onda de euforia que se sucedeu à inscrição do cante na lista representativa do Património da Humanidade. Não é para menos. O cante é a mais ampla e agregadora expressão cultural do Alentejo. É algo que nasce pegado às pessoas, como se fosse uma segunda pele, sonora, necessária, fundamental. E por isso mesmo os membros do comité intergovernamental da Unesco terão selado com o carimbo “exemplar” a candidatura portuguesa. O tempo é de festa, ainda. Mas depois da farra virá a necessária ressaca. Esta elevação do cante a Património da Humanidade é apenas um passo, festivo e admirável como todos os primeiros passos, na longa caminhada que se lhe apresenta pela frente. Aliás, no documento final da admissão do cante à lista do Património Cultural Imaterial, os relatores são bastante assertivos a esse respeito. Sim, de facto, a candidatura apresentada em Paris satisfaz exemplarmente os critérios de inscrição. Que poderão ser revistos já daqui a três anos caso não se cumpra o plano de salvaguarda enunciado na própria candidatura. E nessas medidas de salvaguarda, o documento é muito claro em relação a elas, passam pelo reforço da promoção deste “bem” através de exposições, espetáculos, programas educativos e, acima de tudo, reuniões entre os vários “detentores” deste património, por forma a partilhar os diferentes conhecimentos sobre o cante. Ou seja: a candidatura do cante foi aceite, em parte, porque revelava um compromisso das comunidades e dos grupos corais na implementação do plano de salvaguarda. Por outras palavras: esta candidatura terá validade desde que, a partir de agora, todos os agentes no território se comprometam a cantar em uníssono e não em capelinhas, com protagonismos saloios, birras e amuos, como até aqui, de alguma forma, tem acontecido. E este compromisso de união poderá ser o primeiro tapete de espinhos no caminho do cante enquanto património de toda a humanidade. Outra fator importante prende-se com o papel do Estado na implementação do plano de salvaguarda do cante. Diz o comité da Unesco que o Estado está “implicado” no seu financiamento. E aqui a porca pode voltar a torcer o rabo. Bem sabemos como o Estado de proximidade, as autarquias locais, aquelas que mais vizinhas são do cante e melhor o sentem, estão descapitalizadas. E ainda melhor sabemos o trato que o Estado central tem dado nos últimos anos às regiões periféricas e à cultura. Há falta de um governo territorial, regionalizado, é de bom-tom principiarmos todos, em conjunto, como exige a Unesco, a curar a ressaca da festa e a começar a olhar já sem embriaguez para o caminho. Que será longo e duro, embora estupendo se conseguirmos lá chegar. À essência do cante.

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