quinta-feira, 3 de março de 2016

Diário do Alentejo Edição 1767

Editorial
Debaixo
Paulo Barriga

Portugal é Lisboa e o resto
é paisagem. A expressão
é atribuída a Eça de
Queiroz, embora os bons leitores
nunca a tenham encontrado
em nenhum recanto da sua obra.
A ideia? Essa sim. No final do século
XIX, o autor de A Cidade
e as Serras notou e registou o
cheiro pútrido que já então exalava
das estruturas políticas do
seu País, relinchantemente instaladas
no centro da capital, enquanto
o resto do território era
paisagem que mal se distinguia
da “configuração das vilas e dos
vales”. Hoje, como há um século,
o estado da coisa mantém-se
muito pouco alterado. Pelo menos
no que respeita ao conceito
de paisagem, uma vez que Lisboa,
essa sim, parece ter crescido, encurtando,
necessariamente, o
resto. Há meia dúzia de dias foi
dado a conhecer aos jornalistas
um estudo, patrocinado pela
Fundação Calouste Gulbenkian,
onde é estabelecido uma nova
geografia para Portugal. Os autores
da proposta chamam-lhe
mapa das “regiões polarizadas”.
E o grande avanço desta investigação
vai no sentido de as identificar,
reconhecer e implementar.
Sobretudo as regiões polarizadas
do Porto e de Lisboa que, no
seu conjunto, agregam mais de
77 por cento da população nacional,
são responsáveis por 90 por
cento das exportações e concentram
80 por cento dos portugueses
com ensino superior. A região
polarizada de Lisboa, então,
é a verdadeira “metrópole para
o Atlântico”, a expressão é dos
autores do estudo, uma vez que
congrega os territórios que vão
desde Leiria até à zona de Sines
e Santiago do Cacém e desde a
ponta da Trafaria até Évora. Esta
é a nova Lisboa que, em conjunto
com o renovado Porto e o
moderno Algarve, deixará nas
suas periferias aquilo a que podemos
apelidar de “bolsas da futura
paisagem desumanizada”.
Onde, como é óbvio, se enquadra
a integralidade do território
do distrito de Beja, que em tempos
já foi Baixo Alentejo e que,
num futuro polarizado, passará
a constar “debaixo do Alentejo”.
Ou melhor, ficará debaixo daquilo
que em tempos idos foi algum
Alentejo (paisagem) e que
passará a ser demasiada Lisboa
(Portugal). Não há mal nenhum
em existir paisagem e que os
animais que nela se apascentem
sejamos nós. Mas se querem
mesmo que Portugal seja Lisboa,
pelo menos confiram alguma
dignidade a quem persista em fazer
parte da paisagem. E isto de
exigir dignidade no trato não é
pedir muito, nem pouco. É apenas
pedir o resto.

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